Copyright 2016, Camisetas Meninheira.
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Brincar ao apocalipse

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(Tradução da autora, desde o original em espanhol.)

Conquistaremos a nossa maneira de viver no mesmo sentido em que o Oeste foi conquistado. «Genocídio» seria uma palavra mais adequada, e só depois de assimilá-lo estaremos em condições de assumir as correspondentes responsabilidades. Cabem vidas saudáveis ​​e gratificantes fora dos «modos de vida imperial», mas resulta impossível ver os seus contornos desde a profundidade em que nos encontramos imersos na ideologia do capital.
— Asier Arias, “De conquistas, privilegios y responsabilidades”

Ninguém cria assim ou assado para conseguir algo, mas sim conforme o coração ordena, conforme as crenças (divinas e humanas) ou conforme as circunstâncias o fazem improvisar.

Nós criamos os filhos de forma não convencional (ou melhor, nem um pouco), o que nos fez sofrer perseguição e rejeição, pois se desviar do caminho trilhado, é severamente punido, mas isso é outra história. O que estou aquí contando é a nossa experiência de vida quando o mundo estava trancado entre quatro paredes, as pessoas estavam entediadas, odiavam-se umas às outras e gritavam sobre tudo, pois naqueles dias o nosso mundo de facto não mudou e olhavamos para os outros espantados.

Mas comecemos pelo princípio, que nesta história é quando as crianças começam a nascer. Desde a primeira gravidez é que se tornou claro que éramos diferentes e aos poucos afastamo-nos do caminho traçado pelos outros, pelas convenções sociais, pelas expectativas familiares, etc. Nos últimos meses da gravidez, deixei de trabalhar e decidi não procurar emprego até depois da gravidez, um depois que durou muitos anos.

Os meus filhos não frequentaram o jardim de infância ou a creche e, na verdade, viveram grande parte da sua vida fora das instituições escolares habituais, pelo que boa parte da sua educação foi em casa.

Cómo sobrevivir a un apocalipsis zombie.
Foto: Meninheira.
Desde pequenos e a brincar, falávamos sobre como agir “num apocalipse”, o que fazer se o mundo desabasse, se houvesse um apagão global ou se surgissem zombies, porque é uma forma de introduzir conceitos científicos ou de sobrevivência muito divertida, não só através de conversas, mas também com filmes, séries, livros… Houve até momentos de hiperfoco neste assunto para algun dos pequenos que o levou a desenvolver um pequeno projeto quando tinha 8-9 anos; também vivenciaram pequenos momentos estranhos que serviram de treino e para aplicar o que aprenderam.

Já passámos por grandes cortes de energia que nos fizeram recordar o motivo pelo qual a casa estava cheia de candeias e candelabros, que deram origem à construção de candeeiros a pilhas, ou quando o abastecimento de auga falhou e tivemos de trazer auga de uma nascente para casa, fazendo uma corrente para transporta-la, ou como aquela vez em que uma greve dos transportes deixou as bombas de gasolina sem combustível e tivemos de planear escalas com amigos socorristas para deixar Portugal.

De qualquer forma, sempre que falávamos do apocalipse, o lema era sempre chegar à nossa casa nas montanhas de onde quer que estivéssemos, por isso planeávamos como lá chegar, os caminhos a seguir, o que fazer se não houvesse carro…

Os primeiros anos da sua infância foram passados como nómadas, vivendo em lugares diferentes, vivenciando outras realidades.

Em 2020, estávamos a viver em Portugal e acompanhávamos as notícias seguindo a evolução do vírus e, como não podia deixar de ser, preparámo-nos, abastecendo a nossa despensa com muitos meses de antecedência.

Assim que o primeiro-ministro disse que o país estava para fechar, fizemos as malas e fomos para a nossa casa na montanha. No caminho para a fronteira não tínhamos a certeza se íamos conseguir atravessá-la sem problemas. Se tivéssemos esperado mais uns dias, tê-la-íamos encontrado fechada porque Portugal reagiu antes de Espanha. Recordo que parámos em Pontevedra para cumprimentar a família e já falavam em fechar as províncias. Ao subir para a nossa casa a sensação era de fechar fronteiras à medida que íamos passando.

Poucos dias depois, o país foi colocado em confinamento e foram estabelecidas uma série de regras, que eram novas para a maioria da população. E nós, que tínhamos abandonado o caminho trilhado muito antes e com muito esforço, víamos agora o quanto tanto trabalho era recompensado, pois enquanto o mundo estava a cair aos pedaços, continuávamos como sempre, livres, vivendo a nossa mesma liberdade, sem grandes mudanças.

Na procura desesperada de gasóleo para saír de Portugal.
Meninheira.
Já tínhamos uma casa, a nave-mãe, num local privilegiado: a aldeia. Estávamos habituados a partilhar boa parte do nosso tempo em família. Eu trabalhava como freelancer há muito tempo, sem escritório físico, e o nosso sustento vinha de vários sítios. Tínhamos também experiência em educação à distância, autónoma… O nosso estilo de vida era agora imposto pelo governo e confesso que nos sentíamos um pouco irritados com tanta injustiça do passado, porque tudo aquilo por que tínhamos sido apontados, criticados e até perseguidos, era agora valorizado, os outros abriam os olhos e descobriam que existem outras formas de viver, de fazer as coisas e —para quê negar— também nos sentíamos muito felizes a pensar que esta espécie de apocalipse serviria para mudar o mundo, para que muitos outros se juntassem a nós.

Quando se fala sobre aqueles dias, quando eles partilham as suas vivências no confinamento, olho para trás e as nossas memórias não têm nada a ver com as deles. Nem sequer havia máscaras porque não as usávamos na nossa montanha, pois pensávamos que não eram necessárias porque éramos um grupo bolha com os nossos poucos vizinhos.

As nossas memórias desses dias vão desde partilhar gargalhadas ao ar livre com os vizinhos, percorrer os caminhos abertos pelas vacas selvagens, tratar da horta, limpar as leiras… Até fizemos uma estufa com restos de materiais que tínhamos. Isso sim, sempre com um olho nos de verde [NdT: a Guarda Civil espanhola] porque, segundo contavam, estavam a multar aos livres.

Não sei se os pequenos da casa têm consciência do que viveram, ou melhor, do que não viveram, mas eu tenho uma grande sensação de vitória: o nosso trabalho de construção de uma vida paralela ao sistema tinha sido um sucesso.

Cinco anos depois continuamos a construir o nosso mundo fora do mundo, no presente mas sempre olhando para o futuro, construindo para os que vêm após, construindo para os nossos descendentes um refúgio vital porque virão —não tenho dúvidas— outras situações extremas, apocalípticas; e trabalhamos para lhes construir esse futuro da melhor forma possível, sem grande confusão, porque às vezes é tão simples como preparar uma floresta comestível.

Não é fácil sair do sistema normativo, mas o caminho faz-se começando a caminhar, dar o primeiro passo é começar a construí-lo.

E você, finalmente preparou-se para o apocalipse?

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Meninheira, gallega, madre, knowmad, cristiana panteísta, creativa y creadora de otras realidades de vida.

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