(Poemas seleccionados por Manuel Casal Lodeiro, do livro publicado pola autora em 2017.)
Dia sexto
Fomos aguadeiras e forneiras,
sapateiras, alfaiatas,
pandereteiras, labregas.
… Labregas,
antes de que volteasse o mundo,
fomos labregas.
Arávamos os campos
e os leitos
com a mesma reverência,
com a mesma liberdade.
Musicávamos as horas de lavrar
a terra e a carícia
com o suor salgado
e os oceanos do ventre.
Semente de tempo,
som de fonte,
os cabelos bravos a passar nas mãos da água
como um ninho.
E quando o mundo voltou ficou a terra.
Voltaram as galinhas e os regos,
voltou a pandeireta e a nabinha,
voltaram os teares e as agulhas,
o forno de milho e a bigorna,
voltou a relha, e a caldeira.
E ainda foi o tempo para a pele,
tarde a transcender uma voragem
na dor selvática do êxtase.
Voltou o mundo…
Voltou o mundo….
Sétimo dia
Deixo, para ti, pedras miúdas
dispostas em círculos concêntricos.
No interior dos círculos,
um leito, assinala o altar.
Chega vestido com a capa escura,
com a noite.
Conheces o meu nome.
Tens o códice para traspassar a luz.
Virou o tempo nos arranha-céus caídos.
Não mentem já os neónios aplacados
por bicadas atrozes do falcão.
Não mentem mais as lojas do prazer.
Há só uma chave,
a volúpia única das volúpias infinitas
refugiada no hipocausto.
O meu nome é teu,
que o lambes com crisálidas na língua,
que prometes asas no estarrecer da noite,
enquanto aprecias o seu néctar soberano.
Apagou-se a cidade.
Retomamos os caminhos segredos das partículas.
Crepita uma estrela
e nós nascemos, doces, leves, no seu som.
Constelamos o mais longo caminho,
sem moedas,
entre as ruínas do último sol-pôr.
Vigésimo quarto dia
Não tivemos tempo de morrer.
Amávamos de sol a sol
e de lua a lua sonhávamos
colheitas de carne verde
a renascer dos campos
às saudades.
Paríamos as memórias
da alegria pura.
Chegava o outono e apanhávamos as uvas
e as castanhas novas
e as landras primeiras.
Esfolhávamos o milho
e enchíamos o hórreo de futuros.
Eram tempos de filhas e molime,
nos que as cadeiras dançavam
ao ritmo da chuva
e das colheitas.
E ainda conservávamos palavras
para queimar na lareira
quando o frio chamasse polo cheiro do carvalho.
E ainda conservávamos palavras
para abrigar a brêtema do rio.
Não tivemos tempo de morrer.
Sempre cantamos.
O Segredo
Sobre o antigo recinto queria medrar uma autoestrada,
com a mesma força das sobreiras nascidas em chão de
seixo.
Aberta a minha entranha, ainda tremia,
no parto reiterado, de mim mesma,
e afastei o asfalto,
e redimi as fervenças
e as rochas da alvorada,
e o som do mar na marejada,
e os seios de lama,
e as carícias de inverno
e as mentiras de gelo.
Segredei as luas que me cobrem, mantos de luz para a
ternura, segredei as vidas que me levam, gerações
inteiras de lascívia,
e o círculo assim foi libertado,
mais uma vez aberto ao frio,
mais uma vez reiterado,
o círculo da eterna ladainha.
O meu segredo é um burato cálido,
o meu segredo é um universo,
passou por livros e regatos,
lavou no lavadoiro velho,
até apagar memórias e volteá-las,
renascer na cópula dos tempos.
Caminhamos em círculos concêntricos.
Sentidos inversos.
Águas bravas.
Erguemos na pedra o som do pranto,
o encontro cíclico dos astros
e o sacrifício lento,
a morte dos deuses sobre a rocha
para que volte a luz da primavera.
Criatura de amor recém parido, desde a entranha do
vento, este segredo espelha o plenilúnio, o velho
templo, o cântico de mim, que sou sem tempo, a dor
da palavra em nós perdida, como o sussurro azul da
estirpe moura, o eco das idades e nós próprias.
Flor aberta em povo, em universo.