O que comemos, o que vestimos, como nos movemos, a nossa casa e tudo o que nela existe e como lá chegou. A nossa forma de extrair recursos da Terra tem um custo ambiental e nenhum deles é facilmente reversível. Por muito bem desenhadas e narradas que sejam, duzentas páginas de avalanche de dados sobre o tema da energia (a sua geração, utilização, evolução histórica) e a sua consequência para a humanidade (bem-estar) e para o planeta (esgotamento) podem resultar em saturação de informação. Mesmo para aqueles de nós com uma formação técnica e um mínimo de interesse na questão, a leitura pode contribuir para o que ficou conhecido como ansiedade climática. Contudo, das inúmeras ideias objetivas (de um ponto de vista científico, só podem ser refutadas por especialistas) veiculadas em O mundo sem fim, há algumas que, embora já sejam conhecidas, achei particularmente dignas de nota. A primeira é a nossa dependência absoluta do petróleo para o fabrico e transporte de absolutamente tudo o que nos rodeia. A nossa civilização é sobretudo dependente do petróleo e é impensável e insustentável sem ele. E não, as energias renováveis, para além da sua baixa taxa de retorno, não vão mudar isso de forma alguma porque o seu alcance é minúsculo em comparação. Outro conceito interessante no contexto do consumo crescente (desenfreado?) de energia (e que não evito relacionar com o princípio paradoxal de quanto mais eficiência em termos energéticos, mais consumo de energia) é que a bolha das novas tecnologias nada fez, na sua escala, senão acrescentar combustível ao fogo. Para citar, “os fluxos de dados não são um substituto para os fluxos de mercadorias. O virtual não é um substituto para o físico. Quanto mais mercadorias há circulando, mais dados tem e vice-versa”. E sublinho: “as emissões de dióxido de carbono devidas à atividade digital são equivalentes às de toda a frota mundial de camiões… ou 2 vezes a marinha mercante mundial” (simplificando excessivamente, estamos a derreter o planeta para viver mais e melhor enquanto nos entretemos a alimentar os algoritmos do Instagram ou Twitter).
A voz que tece o relato é a de Jean-Marc Jancovici, enquanto Cristophe Blain lhe dá a réplica pontualmente e a retrata com belos desenhos. O primeiro é um dos principais especialistas em energia e o segundo um famoso autor de BD; ambos franceses. Após um breve prefácio na primeira pessoa, Blain apresenta o seu co-autor e narrador omnisciente, depois a maior parte do álbum consiste na entrega do bastão pelo ilustrador ao engenheiro para transmitirem conjuntamente, de uma forma compreensível para qualquer leitor/a, a enorme complexidade e interdependência do nosso mundo industrial(izado). É um desafio considerável que, estando ambos à vontade nos seus respetivos universos profissionais, resolvem com grande acerto, resultando num volume espesso que cumpre mais do que a sua finalidade informativa. O cuidado que Blain teve em transmitir noções através de gráficos sintéticos e visualmente agradáveis mostra a vontade e o afeto que colocou neste projeto sonhado. Ele está muito interessado em aprender de Jancovici e graças às suas ilustrações nós aprendemos com ele ao mesmo tempo. À luz do exposto, não é tão surpreendente que o título em questão tenha sido o livro mais vendido na França em 2022 (e não apenas entre os quadrinhos).
Uma figura recorrente no artefacto narrativo desta obra é curiosamente Iron Man, o homem de ferro da Marvel, do qual Blain se apropria para representar a incrível capacidade e versatilidade que os seres humanos alcançaram hoje graças à energia, sendo o problema que estamos “confrontados com um duplo problema de energia poluente e energia em declínio”. Jancovici acredita que a redução das emissões atmosféricas nocivas, à velocidade necessária, é incompreensível e inatingível por qualquer Estado e político/a e defende a alteração das convenções macroeconómicas, descartando o PIB como o único indicador. Em termos de estratégia para obter energia, minimizando simultaneamente o impacto climático, a sua aposta é da França: centrais nucleares. São seguras e limpas. Este é o seu argumento e dedica-lhe uma parte perceptível de todo o seu tratado, atrevendo-se a afirmar que fizeram “tudo o que era necessário para tornar Chernobyl e Fukushima impossíveis” lá. Para ele, o estado de emergência energético-climática e as contas matemáticas dão uma conclusão óbvia: ou nuclear ou catástrofe.
Na última parte, a das receitas de resposta, sugere: no consumo, redução do consumo de carne e laticínios; na produção, aumento do valor económico do produto agro-pecuário, recuperação dos ciclos integrados nas quintas (como na realidade eram as fazendas na era pré-petrolífera) e a formação especializada em alterações climáticas para os agricultores de amanhã. Em termos de mobilidade, uma mudança de paradigma (dependendo da área: comboio em vez de avião, comboio em vez de carro ou bicicleta em vez de carro). Ao formular a sua aposta, o cientista diz que melhorar a eficiência energética dos lares, mudar os transportes e impulsionar as centrais nucleares “torna o decrescimento aceitável”, uma vez que, por outro lado, “o crescimento verde” é uma fantasia.
A parte mais volumosa de O mundo sem fim, devido às dimensões e dificuldade da tempestade energético-climática que se aproxima, transmite uma sensação de inevitabilidade em linha com as previsões mais pessimistas, independentemente das formas de poder dos principais atores internacionais, como a China, os EUA ou a Rússia. Talvez devido à sua formação, Jancovici parece manter a confiança em soluções técnicas combinadas com uma certa modulação nos hábitos e costumes sociais. Talvez ele já não espere nada da política, mas na minha opinião esta é a grande ausência neste livro. Para além de representar os funcionários eleitos como estando apenas atentos ao que é eleitoralmente favorável e pintar os alemães como “verdes” antinucleares míopes e preconceituosos cujas teses não resistem o exame de um simples cálculo numérico, toda a avaliação é puramente científica e técnica. Deste jeito, após a longa bofetada tipo “é assim que estamos e foi assim que aqui chegámos”, o episódio final, destinado a dar-nos pelo menos alguma esperança (ingénua?) para o futuro, não mostra qualquer expetativa de mudança política, como se assumíssemos a imponderabilidade da inércia extrativista que, para fins globais, faz com que sejam iguais entre si as já mencionadas grandes potências mundiais (também as pequenas nações que seguem aquelas).
Em conclusão, o livro parece uma excelente contribuição para a divulgação das chaves que moldam o funcionamento da realidade que conhecemos, mas transmite menos certeza quanto às medidas paliativas e de redirecionamento, a menos que concordemos com a opção nuclear que promete produzir muita energia em troca de pouco impacto ambiental. Assim, nas entrelinhas, lemos um “isto é o mundo e não vai mudar” que obvia alternativas politicamente enraizadas e que se centra na visão de alguém que conhece os meandros da indústria e os seus custos em conjunto com os valores e hábitos da sociedade ocidental.
Christophe Blain é um desenhador extremamente talentoso capaz da síntese caricaturista, a expressividade do cartoon e a beleza da pintura paisagística. Para além da sua linha sinuosa caraterística, acrescenta pinceladas secas ao toque final e aos sombreados, que são normalmente acompanhados de cores lisas. Em termos narrativos, a liberdade das suas composições de prancha permite-lhe escapar ao ajuste convencional de vinhetas emolduradas, o que proporciona fluidez e versatilidade no caso de um projeto ambicioso como este, que explora inúmeras épocas e todos os cenários físicos do nosso planeta, além de fornecer estatísticas e metáforas visuais. Tenho de admitir que pessoalmente, sendo um dos meus autores favoritos, não me faz particularmente feliz, como leitor egoísta, vê-lo embarcar em obras como esta se elas forem em detrimento do contador de histórias que admiro. Como autor de BD o Blain que mais apreciei foi aquele que participou episodicamente na longa série A Masmorra e criou os westerns Hiram Lowatt e Placido (duas aventuras com guião de David B.) e o magistral Gus (4 volumes, em curso), bem como o aventureiro Isaac o pirata (5 volumes, inacabado), mais o clássico revisionista Socrates, o semi-cão (3 volumes com guião de Joann Sfar). Ele é também o autor do antigo mas interessante O redutor de velocidade e de outros títulos de que gostei menos, caso da Amargura apache do Tenente Blueberry (novamente com Sfar). Outros títulos de que não gostei: A moça (com Barbara Carlotti), Quai D’Orsay, uma crónica atrás do pano da alta política, e a gastronómica Na cozinha com Alain Passard. Estes dois últimos vejo-os como precursores deste Mundo sem fim, na medida em que abriram a sua gama de géneros a ensaios e crónicas sociais contemporâneas.