(Originalmente publicado em espanhol em Alteridad.net. Foi adaptado para publicação em nossa revista, incluindo a ilustração com imagens, bem como o acréscimo de uma introdução e uma seção final para maiores informações. Tradução de Joám Evans Pim.)
Introdução
O atual processo eleitoral no Equador está provocando um intenso debate nacional e internacional, em que as divergências sobre o conteúdo, os objetivos e as estratégias da esquerda ficaram em destaque. Neste debate, duas visões opostas de “esquerda” estão se tornando evidentes. Uma delas é a representado por Andrés Arauz, candidato apoiado pelo ex-presidente (da esquerda) Rafael Correa, que obteve a maioria dos votos no primeiro turno, realizado em 7 de fevereiro. A outra é a representada por Yaku Pérez, um líder indígena, contrário às minas e à privatização da água, que era prefeito da província de Azuay, e que não alcançou o segundo lugar na votação por uma margem muito estreita (mesmo se tem falado de fraude), sendo ultrapassado pelo banqueiro e empresário Guillermo Lasso, que conseguiu passar ao segundo turno a celebrar em 11 de abril. Uma das principais questões a serem debatidas é se os governos de esquerda debem promover projetos extrativistas ecologicamente destrutivos, como fez Correa, como estratégia para melhorar as condições materiais de vida da população, pelo menos no curto prazo, ou se existe uma alternativa mais sustentável e justa em harmonia com os ecossistemas com a qual possa ser alcançada a justiça e um genuíno Buen Vivir.
Há uma opinião generalizada de que Arauz, enfrentado com Lasso no segundo turno, vencerá sem problemas, devido ao amplo descontentamento com a política neoliberal do atual presidente, Lenín Moreno. Ao contrário, a possibilidade de Pérez ter chegado ao segundo turno das eleições presidenciais aumentou a esperança de seus apoiadores, não só de que derrotaria Arauz, mas também de que sua visão de uma esquerda anti-extrativista e ecológica, baseada em valores indígenas, poderia ganhar apoio como uma alternativa clara e genuína ao neoliberalismo.
Em resposta a uma carta aberta do proeminente intelectual de esquerda português Boaventura de Sousa Santos, o acadêmico indígena equatoriano Atawallpa Oviedo Freire destaca, no texto que se segue, o caráter profundamente destrutivo do progressismo correista e do neoliberalismo de direita, como ramos do que é essencialmente o mesmo paradigma planetívoro ocidental. Ao mesmo tempo, celebra o ressurgimento de um movimento indígena em resistência às pressões que tentam limitá-lo a ser um braço cooptado e subordinado de uma formação política ocidental progressista e antiecológica, um movimento que embarca numa luta transcivilizacional em busca de uma alternativa autêntica politicamente, socialmente e ontologicamente.
Caro Boaventura, é com grande tristeza que li várias vezes a sua “Carta aberta a dois jovens indígenas equatorianos”, na qual mais uma vez, e sem querer querendo, acaba por apoiar mais uma vez o progressismo, apesar de que afirma ser crítico e não quer aconselhar ninguém. Assim como outros decoloniais, como Dussel e Grosfoguel, que também apoiaram o progressismo latino-americano, e que da mesma forma, sem querer querendo, continuam a ser eurocentrados, embora digam que não são ou digam que o questionam.
Na sua carta lembra-nos o que o stalinismo fez a todos aqueles que o questionaram, argumentando que a revolução tinha que ser defendida apesar de seus erros. O senhor Boaventura viu como tudo acabou, apenas para reconhecer que estiveram errados no apoio aos stalinistas. E esse é o mesmo caso de agora, mas pede-nos para esquecer o que aconteceu ao longo da história da esquerda mundial com sua perseguição aos que discordavam de seus dogmas, sob o argumento de que a direita neoliberal e o imperialismo são o perigo real. Quando para nós ambos são perigosos, e não é fundamental quem é mais perigoso, mas ambos são contraproducentes, não só para o ser humano mas para a vida como um todo, com o seu extrativismo de esquerda e de direita.
No final das contas, o senhor Boaventura aderiu à linha do progressismo mundial e repetiu o mesmo discurso stalinista. Diz que Yaku Pérez apoiou o golpe na Bolívia. Faltou acrescentar que Yaku concordou com Janine Añez e que apoiou as mortes de Senakaba e Senkata, como é o discurso correista no que acreditou pelo seu valor aparente. Mostre que apoiou o golpe. Até agora, para todos que eu disse para provar isso, ninguém foi capaz de fazer isso. Yaku, como o Mallku Quishpe, muitos líderes bolivianos e movimentos indígenas e sociais, e de alguma forma o próprio Choquehuanca, criticaram Evo por seu desejo de permanecer no poder e por não ter conhecimento do referendo em que o povo boliviano, incluindo os do MAS, disseram-lhe que tinha que deixar passo para outra pessoa.
Em toda a sua carta critica Yaku e só tem a dizer que ele é de direita, embora diga que Pachakutik apoiou o neoliberal de direita Lenin Moreno. Prove isso também. Sim, houve alguns membros da assembleia que apoiaram certos projetos, mas foram questionados e criticados por Pachakutik. Mas o senhor repete o discurso correista de que Pachakutik era aliado de Moreno, juntando-se assim ao grupo de intelectuais progressistas internacionais na campanha suja contra o movimento indígena e em particular Yaku, como demonstrou Salvador Schavelzon.
Quando o senhor Boaventura esteve em Quito há cerca de 6 anos e se encontrou com vários intelectuais, explicamos pessoalmente a situação que estávamos vivendo, mas não ajudou muito. Desde aquele encontro, senti que o senhor não entendeu totalmente a nossa luta, e o tempo confirmou isso, porque, em última análise, o senhor sempre se pronunciou a favor do progressismo, e a carta que motivou esta resposta reflete claramente a sua posição e confirma uma vez mais que estamos em caminhos diferentes.
Não falar desde uma filosofia milenar construída coletivamente, é falar desde uma visão eurocêntrica, ou mais precisamente helênica, que os gregos sistematizaram e chamaram de civilização. Paradigma que os romanos cristianizados impuseram às culturas indígenas da Europa, e que mais tarde os europeus civilizados ou dogmatizados continuaram a reproduzir, mas que ultimamente o movimento celta também questionou.
No entanto, a maioria dos intelectuais europeus de esquerda ainda não os levou em consideração, como é o caso do resto do mundo ocidentalizado e seus satélites, nos quais todos falam de uma visão eurocêntrica de esquerda e de direita. É por isso que a direita e muitas esquerdas criticam as filosofias indígenas, ou as desprezam porque as desconhecem e, sobretudo, porque não funcionam a partir dessas ontologias e epistemes.
Assim, os povos indígenas de todas as cores de toda a Mãe Terra levantaram-se reivindicando o sumak kawsay (Abya Yala), o Ubuntu (África), o Swaraj e Tanxia (Ásia), o Awen (Europa), para citar alguns conceitos, podendo ser todos eles traduzidos como: “todos vivendo em harmonia sob o céu”, como dizem os antigos chineses. É a partir dessas epistemologias coletivas milenares que falamos e interpretamos nossa realidade, e essa é a diferença com todos os outros que falam das epistemologias eurocêntricas do sul e do norte, umas mais e outras menos eurocêntricas, e acho que o senhor tem ainda alguns atrasos eurocêntricos.
São eurocêntricos porque não fazem sua crítica a partir de uma epistemologia elaborada coletivamente pelos próprios povos, mas de seu particularismo individualista, que se forma no paradigma eurocêntrico e não em estudos sérios de filosofias não ocidentais. Ou seja, não deram um giro coletivo para falar a partir de epistemologias e ontologias construídas há milhares de anos, mas de construções individuais ou pequenos grupos nascidos no interior do Ocidente.
E faz parte dele o progressismo, que é a expressão pós-moderna dos setores médios e académicos que procuram deslocar os movimentos sociais (principalmente indígenas) ou cooptá-los para que fiquem sob sua tutela social-democrata e até mesmo democrata-cristã, sob a designação de nova esquerda. É por isso que eles nos confrontaram, porque nós não estamos mais atrás de sua fila eurocêntrica do socialismo do século XXI, mas sim disputamos suas concepções e horizontes. Porque eles querem continuar a nos ter apenas como uma massa ou como um braço indígena ou feminista ou ambientalista ou popular. E porque empreendemos uma luta em que já não é apenas de classe e moral (como eles querem), mas ontológica e trans-civilizacional. Esta é a linha de fundo, entre umas e outras posições.
Para saber máis:
- “Elecciones en Ecuador. Otra izquierda es posible”, 25 fevereiro 2021, Pablo Ospina Peralta.
- “Caminos y bifurcaciones del movimiento indígena ecuatoriano”, fevereiro 2021, Pablo Ospina Peralta.
- Para uma análise das eleições recentes em Bolívia, onde se debatem questões semelhantes e distintas visões da esquerda, vid. “Por qué ganó Lucho y David en las elecciones de Bolivia”, 19 outubro 2020, Pablo Solón.
