Fragmento dum desenho de Carlos Calvo Varela para um poema de Gabriel Aresti.

As raízes comunitárias dos movimentos sociais

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Diz o antropólogo David Graeber que o cepticismo com as propostas libertárias e de autogestão se deve a um bloqueio da imaginação política, pois “na realidade o que se nos pide é um exemplo de um Estado-nação moderno ao que de algum modo se lhe tenha extirpado o Governo”.[1] A revolução social catalã-aragonesa de 1936-1939 desbloqueou essa imaginação, tornando-se uma referência imprescindível para quem acredita num projeto revolucionário não autoritário. Mas onde surgiu aquela sociedade autogerida em plena guerra, aqueles tranvias em perfeito funcionamento que surpreendiam a Castelao? É difícil aceitar a geração espontânea em sociologia, e mais ainda esse sonho político platónico ―do que adoecem mais ou menos todos -ismos― segundo o qual os projetos sociais são algo assim como teorias de mentes preclaras levadas à prática, palavra feita carne.

Gerald Brenan publicou em 1953 um livro intitulado The Spanish Labyrinth, onde descrevia a revolução municipalista da CNT como o governo de um sindicato que não era outra cousa que todo o povo ―filiado ou não à CNT― reunido em assembleia um serão à semana para resolver os problemas quotidianos. O surpreendente para Brenan era a “rapidez, espontaneidade e facilidade” com que esta forma de autogoverno, que nos últimos setenta anos surgia cada vez que o contexto político de revolta o permitia, se formava e satisfazia as necessidades do povo camponês, de pequenos proprietários a operários agrícolas. “Todo o povo trabalhava com tal naturalidade como se o povo não tivesse conhecido nunca outro sistema. Isso leva-nos a investigar se esta maneira de administração das aldeias vai ser realmente uma invenção anarquista. Pola contra, o sindicato e co comité de 1936 eram em todos os aspectos idênticos ao concelho aberto […]”.[2]

Quanto à Galiza, temos pendente a investigação da relação entre esta institucionalidade indígena ―a tradição da democracia paroquial e aldeã― e os modernos movimentos sociais emancipatórios, não só pola sua importância prática perante dous desafios em que já estamos imersos: um, como territorializar em um institucionalidade própria para resolver os problemas da vida quotidiana as ideias que se defendem numas mobilizações que, por definição, não podem ser permanentes; e dous, que se pode resgatar para a emancipação, num momento de rerruralização inexcusável e abalo da civilização industrial, de todo o que fica ainda vivo da civilização labrega.

Democracia paroquial no agrarismo, anarquismo e galeguismo

De uma nova perspetiva histórica o comunitarismo emerge como um factor político de primeira ordem na Galiza. A resistência contra o processo de acumulação por despossessão que foi a fábrica de Sargadelos, a finais do século XVIII e começos do XIX, deveu-se aos concelhos de vizinhos que se ergueram para defender os comunais. A própria resistência à ocupação francesa, na altura o maior exército do mundo, triunfou polas bases comunitárias, paroquiais e concelhias.

Na década de 1880, e a pesar de lustros de propaganda societária, J. A. Durán conclui que “as formas de agrupação tradicionais (‘concelhos’, ‘juntas de homens’, agrupamentos comunitários, etc.) predominavam de maneira evidente sobre as modernas fórmulas associativas”,[3] desenvolvendo pola sua conta sistemas de resistência como as mútuas gandeiras, que abundam no século XVIII.[4] Com o nascimento do agrarismo, o grande movimento de incorporação do campesinato à política moderna, a paróquia torna-se base do movimento.[5] Modernos sindicatos e democracia paroquial retroalimentam-se e,[6] tal como dizia Brenan a propósito da revolução social de 1936, as duas realidades acabam confundindo-se: o sindicato não é outra cousa que a paróquia, e os seus métodos são os do comunitarismo, reclamando a gestão direta dos comunais ―montes, fornos e demais―, para instaurar uma democracia rural que se fazia forte ao confederar-se e assaltar as instituições do Estado no seu primeiro chanço: o municipal.[7] O movimento agrário em São Pedro de Oça (nessa zona libertária onde primeiro dominou a Unión Campesina e depois a CNT) foi para Durán “un dos melhores exemplos de de madurez agrária: a luta contra o caciquismo municipal era antiga, praticando os concelhos aldeãos ―como agora a Sociedade― derramas de impostos em função da riqueza real dos associados. Oça tem de ser um dos focos conflitivos mais importantes da área”.[8] Nas eleições municipais de 1909, de sete concelheiros vacantes obtêm cinco, em meio de uma luta mui intensa: abatem os pinheiros do monte comunal expropriado polo recadador de consumos do Ayuntamiento, enfrentam uma repressão que inclui encarceramentos, praticam sabotagens, etc.

Castelao, numa magnífica descrição da democracia paroquial, soube ver mui bem essa revitalização e repolitização ―no sentido de adaptar-se ao combate da política moderna― que lhe estava a imprimir o agrarismo: “O adro da igreja o Concelho natural da Galiza. Ali juntam-se todos os vizinhos na manhã dos domingos para tratar dos seus assuntos, ainda que não vaiam à missa. E também celebram assembleias extraordinárias ―decote convocadas a golpe de sinos― para resolverem assuntos urgentes. Tanto nas paróquias labregas como nas marinheiras existem velhas instituições comunais: ajudas gratuitas no trabalho, aproveitamento de montes, pastoreios em comum, distribuição de regos, acarreto de pedra para obras, fornos, moinhos, eiras e outros serviços vizinhais”.[9]

Em todas as tradições políticas galeguistas, do nacionalismo conservador de Risco ou Pedraio ao arredismo de Fuco G. Gómez, a democracia paroquial aparece como célula básica da Galiza livre. Está por fazer uma antologia sem preconceitos[10] de todos estes textos políticos, que em conjunto darão uma panorámica mui diferente ―mais “libertária”― da tradição galeguista. Lois Peña Novo, no seu La Mancomunidad Gallega, dá um detalhado processo jurídico-político de reconhecimento da democracia paroquial como base de articulação do país, tal e como o agrarismo já estava a praticar:

“Primera: Reconocimiento jurídico de las parroquias en Galicia, para establecer y recaudar tributos y realizar mejoras, sin perjuicio de constituir por leyes posteriores el Municipio parroquial. Segunda: Autorizar el régimen administrativo parroquial, en lo que se refiere a las anteriores funciones, a las Sociedades agrícolas parroquiales que, existiendo con anterioridad a esta disposición, tengas un número de socios equivalente a la mayoría de los vecinos de la parroquia. Tercera: En el caso de existir varias Sociedades Agrícolas en la misma parroquia, intentarán ponerse de acuerdo para estos fines. Si no pudiesen conseguirlo, y también en el caso de que no existiese ninguna, se formará una Junta parroquial compuesta por los dos cabezas de familia de más edad, los dos más jóvenes y el mayor y el menor contribuyente, y esta Junta se renovará por bienios, siguiendo siempre su elección el mismo procedimiento y sin hacer distinción de sexos, no siendo reelegibles los cargos hasta haber sido sucesivamente desempeñados por todos los vecinos”.[11]

A proposta de Peña Novo, que concebia as juntas paroquiais como “escolas de espírito democrático”,[12] não era revolucionária nem antiestatal (de facto foi escrita ao abeiro da ilusão de que Primo de Rivera permitiria um processo de descentralização e democratização, ilusão na qual, por certo, também caíram sindicatos de esquerda), mas permite ver coo uma outra organização política e administrativa era imaginável, e até que ponto o concelho e o agrarismo paroquiais tinham força e influíam o imaginário político.

Há que revisar também, agora que tanto se fala da democracia radical, os avançados programas do Partido Galeguista nesta matéria, propondo sempre mecanismos de democracia direta por “riba” e por “baixo”: referéndum, revogação de mandato e concelho aberto. No terreno municipalista o programa do PG de Sada, já posto como exemplo no seu tempo, recobra totalmente a sua vigência: reconhecimento do concelho aberto, municipalização dos serviços de água e eletricidade, etc.[13]

Quanto ao anarquismo, a Confederação Regional Galaica também reclamou para os sindicatos ou concelhos paroquiais a gestão dos montes e outros comunais.[14] À vista desta tradição de autogoverno labrego cobra mais valor a interpretação que Dionisio Pereira faz da CNT galega, que talvez não haveria que ver tanto como uma das mais “reformistas” do anarquismo ibérico senão mais bem como uma organização que soube achegar o seu ideário à realidade social do país. Pode que neste sentido fosse mais ágil do que o anarcosindicalismo catalão, que após o “triénio bolchevique” vai retroceder na sociedade rural, por culpa da repressão “mas também a causa da sua visão excessivamente urbana que não lhes dava uma compreensão suficiente da problemática do mundo rural, onde a pagesia demandava uma solução mista entre a propriedade familiar e o trabalho coletivo, enquanto os anarquistas durante o Congresso da Comèdia de 1919 vão-se opor à parcelação da terra (Pomés, 2008) e a qualquer ato de caráter individual ou familiar”.

Fragmento dum desenho de Carlos Calvo Varela para um poema de Gabriel Aresti.

Notas

[1] David Graeber, Fragmentos de antropología anarquista, Barcelona, Virus, 2011, p. 50.

[2] Gerald Brenan, The Spanish Labyrinth, 1943, cit. em David Algarra Bascón, El comú catalá. La història dels que no surten a la història, Vilanova del Camí, Potlatch, 2015, p. 53.

[3] J. A. Durán, Agrarismo y movilización campesina en el país gallego (1875-1912), Madrid, Siglo XXI, 1976, p. 25.

[4] Ibidem, p. 57, n. 1.

[5] “El agrarismo es el primer movimiento social contemporáneo que saca partido de esta peculiaridad sociocultural”, ibidem, p. 85, n. 5.

[6] No caso da Solidaridad Gallega houvo concelhos aldeãos que solicitavam oradores ao sindicato para dar mitins nas suas paróquias. Ibidem, p. 201.

[7] A estratégia que se parece à das CUP: “a gente pode fazer seu este último chanço do Estado e invertê-lo para torná-lo o primeiro chanço da defesa institucional da unidade popular”, Quim Arrufat entrevistado por Marc Casanovas, “El movimiento popular debe avanzar por sus propios caminos estratégicos y no sometido al de la lógica institucional”, Viento Sur, n.º 143, dezembro 2015, 58-70, p. 61.

[8] J. A. Durán, op. cit., p. 208-209. Para uma etnografia de como se efetuavam esses repartos comunitários dos impostos estatais veja-se Nicolás Tenorio, La aldea gallega, Vigo, Xerais, 1982 (1914).

[9] Castelao, Sempre em Galiza, Livro I, Cap. XXVII.

[10] Tem-se sublinhado o caráter conservador e certamente patriarcal que tinham algumas destas propostas, mas não é menos significativo que Risco citasse Kropotkin, Antón Vilar Ponte a Proudhon, ou que o arredismo propugesse uma república galega que federasse autonomias municipais urbanas e paroquiais rurais de baixo para cima (veja-se Fuco Gómez, Naciones Ibéricas, Havana, Rambla, Bouza y Cía, 1931).

[11] Lois Peña Novo, La Mancomunidad Gallega, Vigo, Biblioteca de la revista Mondariz, Imp. de M. Roel, 1921, pp. 79-80.

[12] Cit. em Justo Beramendi, De provincia a nación. Historia do galeguismo político, Vigo, Xerais, 2007, p. 634.

[13] “Exemplo a imitar. O programa local do Grupo de Sada”, A Nosa Terra, n.º 367, 25 de maio de 1935, p. 3.

[14] Dionisio Pereira, A CNT na Galicia 1922-1936, Santiago de Compostela, Laiovento, 1994, pp. 157-158.

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