Frente as tentativas desesperadas para dar continuidade à engrenagem estatal, representadas com as proclamas verbais por um processo constituinte e a banal retórica de participação e democracia real, está na hora de reconsiderar as alternativas que oferece este particular momento histórico de crise sistémica e colapso energético. Frente a via que procura incrementar ainda mais a dependência das pessoas do estado e do capitalismo (ilustrada por projectos como a renda básica universal) e fabricar uma nova legitimidade estética para as suas instituições totalitárias, cumpre desenvolver a independência desde abaixo minando a legitimidade e autoridade que nós próprias conferimos ao estado que nos domina. Não pode haver ruptura democrática se há continuidade do estado e, portanto, negação da democracia. A democracia como autogoverno sustenta-se na soberania das assembleias, na Galiza chamadas historicamente concelhos (abertos), antítese do totalitarismo estatal sob as suas diversas máscaras: a democracia orgânica fascista, a democracia popular estalinista, a democracia liberal ou parlamentar ocidental, a democracia guiada da Rússia ou Indonésia, etc.
O duplo processo de ruptura democrática com o estado e o capitalismo, que se fundamenta na vontade de autogoverno e autogestão, não deve visualizar-se como algo brusco e determinante, fruto de um ato banal como pode ser o exercício do ritual eleitoral ou de uma recriação do fetiche da tomada da Bastilha. Parlamentos e fortalezas, privados do poder simbólico que lhes confere a nossa obediência, são apenas cimento e papel (que, como descobriremos em breve, não são comestíveis). Pola contra, chamamos “processo desconstituinte” ao movimento lento, disperso e descentralizado que subtrai progressivamente poder, legitimidade, autoridade e efectividade ao quadro jurídico-político-económico que sustenta a existência do estado (neste momento, o espanhol e europeu), incluindo o seu texto constitucional e toda a legislação, instituições políticas e económicas e hierarquia administrativa que dela emanam directa ou veladamente. Não procura este processo reformular ou substituir este aparato estatal por outro, mas construir de forma paralela e em seu detrimento, institucionalidades alternativas para o autogoverno assemblear comunitário e a autogestão das necessidades básicas, possibilitando o desenvolvimento de sociedades à margem do estado, contra o estado, sem estado.
Rachando com o mito da tomada das instituições estatais com o fim manifesto da sua transformação revolucionária, que tem levado à perfeição do seu sistema de dominação, o processo desconstituinte tem como fim a sua liquidação, lenta e cheia de obstáculos, mas irreversível. Rejeitando a visão monolítica do poder e da autoridade, e percebendo que a continuidade do sistema estatal constitucional depende, em última instância, da nossa lealdade e cumplicidade com o regime, temos o direito e dever de revoltar-nos contra uma ordem constitucional que destrói lentamente o tecido social, a terra e a própria natureza humana. Este direito e dever de rebelião deve traduzir-se na não-cooperação social, económica e política, na desobediência civil, e no estabelecimento de novas institucionalidades à margem do estado. Frente a usurpação constante de recursos e dignidade, a insurgência económica converte-se em necessidade, concretizada por inúmeras práticas como as que ilustra a última edição do Manual de desobediencia económica (2015).
Na Galiza as comunidades vizinhais preexistentes e de nova criação são um espaço natural para a configuração das fórmulas de autogoverno e autogestão comunitária que podem vir a dar maior pulo ao processo desconstituinte. Hoje existem aproximadamente 3.000 comunidades vizinhais com montes em mão comum, colocando sob a lógica assemblear mais de 700.000 hectares, às que se devem somar outras 400.000 que poderiam estar ainda por classificar formalmente. É certo que uma parte importante dessas comunidades estão moribundas pola desertificação do rural que as deixam sem gente, polos convénios com a administração que as deixam sem bens que gerir, polas lógicas de exploração capitalista que desnaturalizam a sua lógica de autossuficiência, ou polos abusos de poder e ingerências políticas que minam as bases do autogoverno comunitário. No entanto, muitas comunidades estão demonstrando como estes duros golpes, fruto do desenvolvimentismo e da expansão do estado para as esferas nas que antes primava a soberania comunitária, são reversíveis.
Os Estatutos adoptados recentemente por algumas comunidades vizinhais, fugindo da praxe promovida pola administração estatal, definem a sua natureza como “instituição consuetudinária de soberania” sustentada nos seguintes princípios: “as relações equitativas baseadas na liberdade, apostando polo apoio mútuo, a solidariedade, a confiança, o respeito e a fraternidade; a auto-organização através da soberania da assembleia; a recuperação do público como bem em mão comum, estendendo o modelo cooperativo autogestionário para todas as necessidades básicas da Comunidade; a recuperação de uma economia baseada na cooperação e nas relações de proximidade; e a aplicação dos princípios de cooperação, conservação e respeito na nossa relação com a natureza, da qual fazemos parte assegurando a boa convivência com os restantes seres vivos.” Outras muitas comunidades realizam estes princípios na sua prática quotidiana, quebrando relações de dependência em âmbitos como a alimentação, energia, vivenda, cultura e procurando soluções coletivas para as economias domésticas, nomeadamente em termos de produção, consumo e financiamento.
Para além do monte vizinhal em mão comum, um âmbito transcendental para o processo desconstituínte é a possibilidade de criar comunidades vizinhais em regime de mão comum sem necessidade de existir um monte classificável como tal. Isto abre as portas desta figura consuetudinária, que tradicionalmente incluía desde moinhos e fornos até tabernas, salinas ou gado, aos âmbitos urbanos e a novos projectos autogestionários, que se acolheriam não só à lógica assemblear mas também estariam sujeitas à protecção dos bens com o mesmo carácter imprescritível, inalienável, indivisível e impenhorável a perpetuidade que gozam os montes vizinhais. A criação deste tipo de comunidades conforme o direito consuetudinário (que mesmo recolhe o Título V da Lei de Direito Civil da Galiza), é mais uma via para dotar de capacidade jurídica e autonomia que apenas se está começando a explorar. A inovação da praxe jurídica de muitas iniciativas autogestionárias, como podem ser as cooperativas integrais, evidencia a necessidade de procurar as fórmulas mais impermeáveis ao escrutínio, fiscalização e usurpação estatal.
A própria Cooperativa Integral Catalana é um bom exemplo, mesmo que nas suas primeiras fases de desenvolvimento, articulando uma multiplicidade de iniciativas tanto a nível territorial (assembleias bio-regionais, ecoxarxes, núcleos de autogestão locais e projectos autónomos) como sectorial (alimentação, auto-emprego, financiamento, tecnologia, educação, vivenda, saúde e transporte). Na Galiza, uma Mancomunidade que articulasse uma rede extensa de comunidades vizinhais e iniciativas autogestionárias sob princípios similares poderia ter imenso potencial. Não é uma ideia nova, e de facto A. Vilar Ponte já escrevera n’A Nossa Terra em janeiro de 1927 sobre: “a atrevida concepção de um possível regime de sovietes paroquiais que mancomunados seriam capazes de fazer da Galiza um povo orgânico, um todo vivo e harmónico, sem Estado, ao jeito dos Estados de hoje”. Dous anos antes, no Congresso de Economia Galega de 1925, V. Risco e H. Costas propõem que: “Cada paróquia poderá, e ainda deverá, constituir-se em cooperativa de produção e consumo, governada pola Assembleia ou Conselho de Vizinhos […], contribuindo os seus rendimentos para o sustento das necessidades da paróquia e para o melhoramento da mesma em todos os aspetos”.
À luz da tradição e da realidade presente, não é impensável recuperar para a lógica autogestionária uma multiplicidade de âmbitos das nossas vidas através das possibilidades que oferecem as comunidades vizinhais e uma confederação das mesmas sob a forma de Mancomunidade. O sistema de doutrinamento estatal das crianças pode ser rechaçado em favor de escolas comunitárias, seguindo o legado das velhas escolas de ferrado, procurando uma cobertura jurídica comum. O monopólio eléctrico pode ser quebrado facilitando instalações micro-hidroelétricas comunitárias e mesmo recuperando para o controle comunitário instalações industriais. A especulação imobiliária, os despejos e a desertificação rural podem ser combatidos com um banco de casas abertas, utilizando contratos de cessão de uso e outras possibilidades legais. A barbárie das grandes superfícies comerciais, das multinacionais da comida lixo e da destruição dos pequenos produtores, pode enfrentar-se com centrais de abastos e economatos em mão comum e selos participativos de garantia, entre outras iniciativas. A extorsão fiscal do estado contorna-se ampliando as relações de reciprocidade e ajuda mútua, a autoprodução (garantindo o acesso à leira básica universal), e o uso de moedas sociais para o intercâmbio, o crédito mútuo e o financiamento comum de projetos comunitários. A insegurança jurídica e comunitária reduz-se estabelecendo tribunais de arbitragem e justiça restaurativa e um corpo autónomo de guarda rural. Qualquer âmbito no que a autogestão à margem do estado hoje resulte para muitas impensável pode na realidade ser devolvido às mãos das comunidades como parte do processo desconstituinte se conseguimos voltar a acreditar em nós mesmas como sujeitos políticos plenos, quebrando as cadeias da infantilização perpétua na que nos prostramos.
Outras comunidades noutras partes do mundo demonstraram como isso é possível. Para além dos Municípios Autónomos Rebeldes Zapatistas ou os Conselhos Democráticos do Curdistão, que instauraram institucionalidades paralelas em contextos de duríssima repressão e mesmo guerra aberta, outras comunidades decidiram apostar decididamente polo seu autogoverno integral, desafiando e negando a legitimidade das práticas e instituições estatais. Também no México, o município michoacano de Cherán K’eri expulsou em 2011 a políticos e policiais, instaurando um sistema de autogoverno assemblear e promovendo a autossuficiência dos seus 16.000 habitantes. Nesta ocasião, incapaz de restabelecer o seu domínio, o estado viu-se forçado a ceder, reconhecendo como legítimo o sistema de autogoverno estabelecido pola comunidade e abrindo a caixa de Pandora para que numerosas comunidades tomem passos similares. Cá, onde a uniformidade jacobina e a lógica estatal cartesiana não pode assimilar a perda de controlo sobre um centímetro do seu território nacional ou do mais minúsculo escalão da administração estatal (como poderiam ser as entidades locais menores ou juntas vizinhais), as comunidades vizinhais oferecem um espaço singular, com suficiente vitalidade, recursos e legitimidade popular, para empreender o processo desconstituinte.
A visão que guiava uma parte movimento de libertação nacional indiano, como ilustra Gandhi de 1946, fundamentava-se em que: “A independência começa por abaixo. Cada aldeia será uma república ou panchayat com plenos poderes. Portanto, cada aldeia deve ser autossuficiente e capaz de gerir os seus próprios problemas, incluindo a capacidade de se defender do resto do mundo se for preciso”. Este processo de independência desde abaixo não tem como pré-requisito nenhuma declaração institucional, consentimento do superior, ou evento catalisador, apenas a vontade de indivíduos e colectividades para iniciá-lo, como na prática já está a acontecer. Para muitos gandhianos naquela altura, a independência formal (uma simples formalidade do direito internacional) conquistar-se-ia, se é que tiver qualquer relevância, quando a maioria das comunidades do país praticassem de facto o seu autogoverno integral. No entanto, como sancionou o próprio Gandhi em seu Testamento (1948), a “independência política” transformara o movimento numa estéril máquina parlamentar, que renunciara a “conquistar a independência social, moral e económica da Índia entendida como as suas 700.000 aldeias”. É um aviso para navegantes, recuperado por Öcalan nos seus princípios do Confederalismo Democrático como “paradigma social não estatal” ou “sistema de democracia sem estado”.
Com o fim do ciclo eleitoralista que trazem as eleições gerais de 20 de dezembro (que na Galiza terá seus derradeiros estertores em 2016) abre-se, precisamente com o Solstício de Inverno, noite mais longa do ano e começo passeninho da volta do Sol e da luz, uma nova etapa. Atingidos os réditos máximos que permitiu a manipulação política do sentimento de frustração, não restando lugar nenhum para o qual enveredar as energias do 15 de maio e outros movimentos sociais, desveladas com o facho as miragens de ruptura democrática, democracia real e processo constituinte, abre-se passo um novo agromar, mais forte e experiente, capaz de reconverter as mentiras e falsas promessas em combustível para o lume novo. Começa o processo desconstituinte.