Texto apresentado no Seminário “Municipalismo dos Comuns”, organizado na Crunha em maio de 2015 pola Universidade Invisível.
«Melhor do que estado, cada terra era um ceive conjunto de municípios e ninguém dominava ninguém. Como consequência natural, de seguida há de parar o medrar monstruoso e contra natura das grandes cidades.»
Outeiro Pedralho, Arredor de si (1930).
Estamos no pico de um processo histórico de concentração centrípeta do poder político. Se no início da Idade Moderna coexistiam na Terra, segundo Sacristán de Lama, umas 600.000 entidades políticas autónomas, hoje há menos de 200 (2008: 144). No entanto, a emergência nos últimos anos de uma multiplicidade de movimentos orientados para a recuperação do papel de pessoas e comunidades na tomada de decisões, colocou no alvo o parlamentarismo e a política profissional, que representam a outra face da centralização e hierarquização social e territorial. A Geração à Rasca, o 15 de maio, Occupy ou o Não vai ter copa são apenas algumas manifestações de um crescente descontentamento. Frente à infantilização e negação política do sujeito que promove o regime de ditadura parlamentar, a participação política direta através do envolvimento nos processos de tomada de decisões coletivas estimula o bem-estar, a resiliência, a coesão comunitária e a felicidade, como demonstraram Frey e Stutzer (2002) num estudo feito na Suíça comparando as comunas com autogoverno assemblear e as comunas geridas por governos eleitos. É por isso que o sistema de autogoverno integral que propõe o municipalismo libertário se sustenta no princípio de que as pessoas (cidadãs ou, melhor ainda, aldeãs) devem ser as responsáveis por pensar, discutir, implementar, vigiar, rever e entender o processo de tomada de decisões, tornando-se conscientes, bem informadas, consideradas, disciplinadas e tolerantes (Trainer, 2010: 155-6).
Alcançar a consciência individual e coletiva que permitirá desenvolver este modelo é sem dúvida o maior desafio a que se enfrenta, pois a autoconstrução do sujeito e a recuperação de uma consciência e identidade coletiva são elementos catalíticos para qualquer mudança e imprescindíveis para evitar uma recaída nas armadilhas da dependência que a devolveriam ao caminho da hierarquia. Os atuais laços de dependência têm um dos seus pontos de sustento na produção e distribuição do conhecimento, devendo incidir-se não apenas em construir meios de comunicação social autogeridos ou recuperar o papel das comunidades na educação, mas principalmente em criar e recuperar conhecimentos de forma coletiva através de atividades realizadas em comum, vitais para o processo de conhecimento acumulativo criador do património coletivo imaterial: consciência, identidade e cultura. Parte dos problemas culturais e identitários da Galiza de hoje resultam da anulação desses processos coletivos, substituídos por uma especialização do conhecimento e formação de quadros de elites técnicas ou intelectuais, desligadas da procura conjunta do bem-comum. A implementação de um modelo como o que aqui se defende não pode de jeito nenhum depender de uma minoria especializada, reprodutora de dependências, mas sim de uma mudança coletiva do sistema de valores, substituindo o que hoje sustenta a sociedade estatal por um outro sistema, que não nos é alheio. Olhando para o nosso passado, podem encontrar-se elementos que já sustentaram comunidades sem estado e que as podem voltar a suster, corrigindo as suas negatividades (por exemplo, a dominação patriarcal dos últimos séculos).
O funcionamento assemblear de uma sociedade coloca em destaque a igualdade política efetiva entre pessoas, muito diferente da desigualdade política atual, encoberta ou paliada polo estado através de uma pretensa solidariedade económica. Tornar normativa a preferência da igualdade política (a democracia assemblear) face às hipóteses de acumulação (de bens, de poder, a aposta na estratificação, desigualdade e hierarquia), é um exemplo de mudança de valores materialistas por outros imateriais. Poderiam mencionar-se igualmente os de concorrência e ódio por ajuda desinteressada e amor; consumo e produção máximos por frugalidade e autossuficiência; submetimento e trabalho assalariado por autoderminação e autoprodução comunitária de subsistência; depredação centralizada e planificada de recursos naturais por autogestão coletiva do património; guerra, violência institucionalizada e solução armada de conflitos por paz, resolução pacífica de conflitos e primazia do consenso e justiça restaurativa.
As próprias estruturas da política profissional não são alheias a este processo. Devemos considerar que traços dos principais componentes do municipalismo libertário, o autogoverno assemblear através de pequenas comunidades (na Galiza de âmbito paroquial), pudessem ser dalgum modo assumidos dentro das propostas sistémicas e estatalistas, se bem que de maneira desvirtuada e parcial, pois a articulação seria sempre de cima para baixo e as comunidades nunca seriam soberanas. As comunas suíças de governo assemblear (Gemeindeversammlung e Einwohnerversammlung), os parish meetings ingleses, os kontzejuak de Araba ou os town meetings de Vermont são alguns exemplos de autogoverno assemblear limitado no seio de administrações estatais, que mesmo evidenciando a capacidade política destas pequenas comunidades, estão longe da soberania comunitária integral que exerceram no passado. Quando a soberania assenta no estado e os governos comunitários são limitados, principalmente, a servirem como órgãos subsidiários daquele, o autogoverno não é real e estará sob constante ameaça. Isto ilustra-se com medidas legislativas recentes que implicaram a supressão das entidades locais menores ou juntas vicinais no estado espanhol e a agregação de freguesias no estado português, ou as ameaças de privatização dos bens em mão-comum na Galiza.
No fim das contas, centralização administrativa e privatização são processos paralelos, pois em ambos os casos implicam externalizar processos de decisão para fora das comunidades, como no passado as desamortizações significaram a conversão de bens comunitários de tipo germânico em propriedade romana (quer estatal, quer individual), levando consigo a possibilidade de autogestão assemblear. Quantos mais bens e atribuições assume o estado (diretamente ou de forma privatizada), mais reduzida fica a sociedade civil, como ilustra a história recente da Galiza, em que âmbitos tão importantes como o abastecimento de água e energia, a providência social, a educação ou o lazer foram progressivamente expropriados. Para reforçar a sociedade, é preciso debilitar o estado, dizia Ward (1996: 24). Os partidários da infantilização estatolátrica podem confrontar-se não só com os já citados exemplos de governo assemblear limitado, mas com um amplo leque de organizações de base comunitária que assumem responsabilidades tão complexas como o salvamento marítimo ou a de bombeiros. Na França, Alemanha, Suécia, nos Países Baixos, Irlanda, Inglaterra, no País de Gales e na Escócia o salvamento marítimo é realizado por organizações sem fins lucrativos com tripulações voluntárias e financiamento angariado através de contribuições locais. No caso das Ilhas do Norte, existem mais de 60 organizações comunitárias de salvamento marítimo, assim como a Royal National Lifeboat Institution, que opera uma frota de mais de 400 embarcações. Os serviços de bombeiros voluntários são também majoritários na Áustria, Alemanha, Bélgica, Finlândia, França, Suíça e Portugal (com entre 75%-80% dos efetivos totais). No Norte de Portugal são ainda frequentes as equipas de sapadores florestais dependentes dos baldios (montes em mão-comum), que respondem perante as suas assembleias de compartes (pessoas comuneiras). Em ambos os casos, constata-se que as confrarias galegas e do Norte de Portugal e as organizações concelhias tiveram historicamente, até que o estado as usurpou, funções idênticas entre as suas atribuições consuetudinárias.
Com a estética assemblear do após 15 de maio e o discurso oco da radicalidade democrática, a assembleia aberta relegou o mítin na gíria política, desnaturalizando aberrantemente a noção de assembleia como espaço popular para a decisão política, e procurando uma confusão interessada entre autogoverno (que nos governemos nós, e não os políticos) com o discurso de uma nova caste de partidos estatistas e social-democratas abandeirados na miragem da participação. As organizações de políticos profissionais na Galiza não só não deram nos últimos trinta anos qualquer passo firme para criar uma estrutura de autogoverno assemblear descentralizado desenvolvendo a precária previsão estatutária de reconhecimento da personalidade jurídica da paróquia, mas tampouco o fizeram a partir do âmbito municipal onde existem vias, mesmo que igualmente limitadas, para o autogoverno desconcentrado. E nada indica, ainda com a nova estética assemblear, que o tenham pensado fazer. Isto porque mesmo as relíquias e versões adulteradas do espaço de decisão assemblear representam uma concretização do antagonismo entre autogoverno e representação, entre política profissional e soberania real exercida diretamente no dia-a-dia. Nesse sentido, é oportuno pensar um municipalismo comuneiro, que na Galiza deve assentar-se não nessa aberrante estrutura extrativa imposta polo Estado, o ayuntamiento constitucional, mas nas freguesias ou paróquias rurais e nos bairros vilegos. Esse municipalismo comuneiro deveria traçar uma alternativa clarificadora e não sistémica sobre a necessidade humana de viver a sua natureza política de forma direta.
Mas do mesmo jeito que devemos diferenciar entre comida de verdade e substâncias comestíveis com aparência de comida, como explica Michael Pollan em Defense of Food, é necessário diferenciar autogoverno assemblear do McDonald’s da radicalidade democrática e democracia real em concorrência por comercializar uma miragem de opções políticas salvíficas, todas elas reduzíveis a diversas formulações da estatolatria bem-estarista partitocrática de sempre. O seu parlamentarismo oferece soluções mágicas com decisões executivas pré-cozinhadas com os grupos de interesse, processadas polos políticos profissionais e conservadas no congelador até ao momento certo, que vem determinado polos inquéritos após a construção social da opinião, reduzindo os comensais infantilizados a fantoches devoradores de propaganda que reduzem a sua natureza política a votar cada quatro ou cinco anos ou a dar um gosto nalguma rede social. Ao contrário, o autogoverno assemblear requer de uma cozinha lenta, que começa com o cuidado e cultivo da terra e continua com a ajuda mútua na colheita, fomentando a responsabilidade, o cuidado e os consensos que acabam, após os trabalhos acordados ou as intervenções de emergência, no jantar coletivo do albaroque. Não por isso deixam de ser menos eficazes ou imediatos os seus resultados, só que quando a assembleia da vizinhança erra no seu critério, as consequências costumam ser limitadas e emendáveis, enquanto no governo centralizado o envenenamento alcança dimensões catastróficas e com frequência irreversíveis.
Haverá quem defenda que a democracia direta pode limitar-se à realização de referendos ocasionais e a organizar assembleias informativas para poder escolher do MacMenu num orçamento participativo. Mas se algo demonstrou o estudo de Bryan (2004) sobre os town meetings de Vermont, com o sugestivo título Real Democracy é que nada há mais desmobilizador para a participação assemblear do que a restrição da deliberação assemblear plena. Quando à assembleia se lhe subtrai o seu caráter deliberativo (deliberar é discutir e avaliar os diferentes pontos de vista para tomar uma decisão), horizontal (todas as pessoas podem participar em igualdade de condições e com a necessária informação) e decisório (as decisões levam a fazer ou não determinadas ações) fica reduzida a uma caricatura de si própria, útil apenas para suster a miragem democrática da ditadura parlamentar que gostosamente retransmitem os órgãos gestores de consensos sociais.
Outro aspeto do momento histórico particular em que se enquadra esta proposta e que torna necessária a sua consideração é a dos limites da capacidade do nosso planeta para sustentar um sistema político-económico, que durante o último século se nutriu de uma série de fontes de energia baratas e abundantes que agora alcançaram o seu pico de extração. Não se aprofundará aqui na questão do pico do petróleo (o Guia para o descenso enerxético e outros textos produzidos por Véspera de Nada são ilustrativos e acesíveis) e de outras matérias-primas mas é notório que ante o que seguramente —junto com a outra face do mesmo problema: a mudança climática— seja o mais grave desafio que esta civilização enfrentou na sua existência, que pode reduzi-la a cascalhos, as propostas bem-estaristas e estatolátricas limitam-se a perpetuar o mesmo sistema que nos levou a este ponto. Ao coro da radicalidade democrática sistémica unem-se as miragens salvíficas das energias limpas e ilimitadas, das cidades verdes, das bondades das culturas transgénicas, da minaria sustentável e da externalização dos custos ambientais e humanos para lugares suficientemente afastados das cristalinas consciências do mundo civilizado. Pensar a democracia real na cidade do século XXI é uma aproximação extremadamente problemática uma vez que o colapso energético tornará as cidades, tal e como hoje são imaginadas, absolutamente inviáveis. Como expressava Xoán Doldán num artigo intitulado “O Futuro é Rural”, “Re-ruralizar e re-agrarizar o mundo já não é uma opção, mas apenas algo inevitável. E fazê-lo suporá mudanças noutros muitos âmbitos. Os prazos, porém, jogam na nossa contra. O debate deveria ser em como fazer o processo de transição e em como investir o tempo de que dispomos”. Por desgraça esse é um debate que não se está a produzir.
Não se defende aqui a panaceia do colapso em si próprio como solução aos nossos problemas políticos e ambientais, mas a necessidade de mudar uma ordem política fundamentada no poder e no economicismo por outra fundamentado na ecologia como quadro para o relacionamento entre os seres vivos (incluída a nossa espécie) com o habitat e ecossistemas circundantes (Casal Lodeiro, 2014). Não se trata apenas de procurar uma sociedade mais livre, justa e igualitária, mas de dar resposta a um problema grave e real, cuja solução exige uma mudança profunda de valores, pois a destruição do meio natural e a incapacidade do estado para apoiar o seu crescimento económico em fontes de energia baratas e abundantes não se traduzirá, por defeito, na emergência de estruturas não hierárquicas. Se a competição entre entidades hierárquicas favorece àquelas que crescem de forma mais eficiente, promovendo uma destrutora corrida à procura do crescimento perpétuo que se nutre da exploração da dependência, o colapso, sem a necessária transformação, levaria provavelmente à reprodução de modelos talvez ainda mais hierárquicos, igualmente sustentados na dependência e na desigualdade, em graus ainda mais aprofundados. É esse o caminho para onde nos dirigem as propostas estatistas, sustentadas na ficção do crescimento e na perpetuação da dependência, e contra o qual devemos construir o horizonte alternativo do municipalismo comuneiro.
Em 1946 Gandhi defendia o princípio de que “a independência deve começar de baixo para cima” de modo que cada aldeia se constitua em república autossuficiente. Para isso acontecer, não se precisaria de qualquer autorização nem de uma revolução no estado circundante, pois a sua materialização pode ser iniciada individual e coletivamente com o requisito único da vontade. A independência formal (como fórmula de direito internacional) conquistar-se-á, se tiver qualquer relevância, quando a maioria do país praticar de facto o seu autogoverno pleno. Uma ideia similar apresenta-a Taibo (2013): “A independência deveria emergir da acumulação das independências prévias que procedem de abaixo: a individual, a comunal, a comarcal, uma vez que o vital é —é de supor— libertar-se das opressões. Isso é o que, por lógica, significa independizar-se”.
Mais do que uma revolução brusca e determinante, é mais provável que a emergência do municipalismo comuneiro decorra de um processo lento de erosão do estado através de uma multiplicidade de iniciativas descentralizadas. Seguindo a sugestão de Trainer (2010) de assumir o princípio tático de não combater diretamente o capitalismo, a via da não confrontação implica ignorar e evitar o estado (espanhol, galego ou europeu) tanto quanto possível, enquanto se constroem práticas e institucionalidades alternativas, em ressonância com o conceito de transformação diagonal de Antonio Negri ou de Zona Autónoma Permanente de Hakim Bey. Frente à tradicional fascinação revolucionária com a tomada do poder através da luta armada, num sistema de autogoverno assemblear à margem do estado, o realmente importante é a vontade das pessoas de tomarem conta das suas vidas e procurar soluções de de forma coletiva para os seus problemas com independência da hierarquia e da estatalidade. Só assim se poderá tentar evitar o cíclico erro revolucionário de assumir as estruturas hierárquicas no processo de combatê-las para apenas acabar por reproduzi-las mais uma vez.
Debilitar economicamente e subtrair legitimidade ao estado através da autoprodução, autogestão e formas de intercâmbio não capitalistas e não fiscalizadas polo estado —como as que se podem facilitar, por exemplo, com as moedas sociais— enquanto se criam formas de apoio mútuo que possibilitem a autossuficiência comunitária, é uma tarefa em que toda a gente pode participar, desde crianças até aposentados. É ainda uma tarefa que pode passar mais ou menos despercebida para o próprio estado até que ganhe proporções difíceis de conter. Autossuficiência e autogoverno são, seguindo a Gandhi, mutuamente dependentes: não haverá autogoverno sem autossuficiência, nem autossuficiência sem autogoverno. A autossuficiência é antes de mais um caminho para o melhoramento e a recuperação das nossas qualidades e valores humanos, mas ao atacar a fonte de obtenção de recursos do estado (consumo, impostos, trabalho assalariado) e as suas fontes de legitimidade (prestação de serviços de saúde, ensino, providência social e segurança), converte-se num instrumento essencial da não cooperação, capaz de exercer pressão debilitadora e deslegitimadora. O modelo da Cooperativa Integral Catalana e da Rede de Cooperativas Integrais é um ótimo exemplo de construção de contrapoder a partir da base, primando a autogestão, a auto-organização e a democracia direta assemblear.
Na Galiza, o modelo do cooperativismo integral poderia desenvolver-se ainda ao abrigo das comunidades vizinhais gestoras de bens em mão-comum, abrindo o potencial de colocar sob a lógica autogestionária mais de 700.000 hectares que representam uma quarta parte do território. O regime em mão-comum do noroeste peninsular, herdeiro das práticas comunitárias que vieram a caraterizar-se como propriedade de tipo germânico, mesmo sendo anteriores e autóctones, continua sustentando-se no aproveitamento coletivo e na gestão assemblear, base do modelo político, social e territorial proposto. Cumpre lembrar ainda que existem grandes áreas não classificadas oficialmente como território em mão-comum, quer por abandono, quer por apropriação indevida, e que ainda poderá vir a sê-lo, como também podem crescer em extensão as já reconhecidos tomando conta de propriedades que estão sob propriedade privada individual. É imaginável que o germe de uma Galiza sem estado estivesse numa aliança entre comunidades vizinhais, algumas delas com base territorial e outras sem ela, que decidem cooperar para autoconstruir fórmulas de solidariedade, troca, trabalho cooperativo e institucionalidades à margem de um estado que lhes vira as costas. Projetos como um sistema de moedas sociais, um sistema de saúde pública cooperativista, serviços de emergências, uma rede de escolantes, um quadro de justiça restaurativa e arbitragem, uma cooperativa de crédito sem juros, um banco de terras para facilitar o acesso à leira básica universal, grupos de consumo que liguem projetos rurais e urbanos ou meios de comunicação comunitários, assentariam as bases para uma nova sociedade que se autoconstrui de forma autossuficiente e soberana à margem da estatalidade.
Neste processo de erosão, a importância das instituições políticas do aparelho estatal deve ser minimizado, descartando a ideia de tomá-las para assumir (e reproduzir) o seu poder. Em todo o caso, a interação com as instituições locais do estado orientar-se-á provavelmente no sentido de evitá-las primeiro, ignorá-las a seguir e finalmente procurar neutralizá-las, minimizando os entraves que possam afetar o autogoverno comunitário e contribuindo para implodir a estrutura da política profissional a partir do interior. Assim, num conjunto de paróquias em que a independência de baixo para cima tenha eclodido, apropriar-se do controlo institucional dos órgãos municipais do estado deveria ser relativamente simples, mas de modo nenhum fundamental ou imprescindível. O modo de atuação do agrarismo na primeira metade do século passado é um bom exemplo. Na perspetiva do municipalismo libertário de Bookchin, o poder do município (mesmo que limitado) pode ser apropriado polas assembleias das comunidades, recuperando serviços e espaços públicos para as fórmulas de controlo autogestionárias, quer por meio de regulamentações formais, quer por compromissos informais. E mesmo se os municípios fossem blindados polo estado, ou esvaziados ainda mais de competências, como já está a acontecer, existem numerosos exemplos de institucionalidades paralelas como os Municípios Autónomos Rebeldes Zapatistas ou os conselhos democráticos do Curdistão, que evidenciam a capacidade de ignorar as instituições oficiais criando fórmulas próprias de contrapoder, mesmo em contextos de dura repressão.
Para Vail (2004) o conceito de estrutura rizomática vai inexoravelmente unido à transformação e integração gradual, incremental e dispersa no qual algumas comunidades (e mesmo indivíduos ou casas) começam a constituir precedentes de boas práticas, que serão adotadas e melhoradas em círculos cada vez mais amplos conforme a lógica da difusão de ideias. O Guía para o descenso enerxético, de Véspera de Nada, é um exemplo recente de instrumento catalítico para a transformação social que está fomentando debate e ação face aos velhos padrões de vida e consumo e face aos desafios da soberania energética e alimentar. Mesmo que o secular processo de despovoamento e envelhecimento rural ainda não tenha atingido o fundo, acertam as análises (Doldán, 2012) que alertam que “re-ruralizar e re-agrarizar o mundo já não é uma opção, mas apenas algo inevitável”, podendo ser determinantes os novos fluxos para espoletar algumas destas transformações.
Mais do que um sistema único excludente, é provável que as alternativas à estatalidade conviverão no tempo e no espaço com fórmulas de organização estatal e mesmo fórmulas hierárquicas de organização à margem do estado. Se no momento de escrever este texto já estão em andamento na Galiza, de forma mais ou menos isolado e disperso, uma multiplicidade de experiências de autogestão e autossuficiência, mais ou menos ocultas e impermeáveis ao escrutínio do estado, é provável que conforme forem ganhando dimensão, capacidade e relevância (como de facto começa a acontecer na Catalunha com a Cooperativa Integral) sejam também mais notórias e cheguem a visibilizar-se como uma alternativa realista e implementável ao estado e à hierarquia. Os mercados e práticas de intercâmbio e reciprocidade tradicionais, que conseguiram contornar os impostos e fiscalizações estatais, são um exemplo. E provável que conforme estas práticas forem aumentando as possibilidades de confrontação direta venham a aumentar também, especialmente na lógica do estado de incrementar a exploração e o espólio dos recursos naturais e da força de trabalho num contexto de escassez. A maturidade das redes e a sua coesão interna será determinante numa eventual escalada da conflituosidade.
Mas escrever sobre a organização política e territorial de uma sociedade sem estado na que as pessoas decidam por si próprias e onde, por natureza, qualquer estrutura dependerá, não de legisladores profissionais numas cortes constituintes ou comissão de reforma estatutária, mas de centos de milhares de pessoas deliberando em pequenas assembleias soberanas, não pode ir além de um atrevido exercício de política ficção. Assim, escrevia Ricardo Mella em 1896, a “organização futura, a organização anarquista, não será um produto forçado de um plano preconcebido, sê-lo-á, porém, dos acordos parciais de indivíduos e grupos, dependendo das circunstâncias e da capacidade do povo nesse momento”.
Referências
- Bookchin, Murray (2003). “The Communalist Project”, Harbinger, 3(1). Disponível em: http://www.social-ecology.org/2002/09/harbinger-vol-3-no-1-the-communalist-project/
- Bryan, Frank (2004). Real Democracy. The New England Town Meeting and How It Works. Chicago: University of Chicago Press.
- Casal Lodeiro, Manuel (2014). Nós, os detritívoros. Disponível em: http://www.detritivoros.com
- Doldán García, Xoán R. (2012). “O futuro é rural”, O peteiro, 1: 5-6. Disponível em: http://www.partidodaterra.net/peteiro/1_3/
- Frey, B. S. e Stutzer, A. (2002). Happiness and economics: How the economy and institutions affect well-being. Princeton: Princeton University Press.
- Outeiro Pedralho, Ramom (1985[1930]). Arredor de si. Vigo: Galaxia.
- Sacristán de Lama, José David (2008). La próxima Edad Media. Barcelona: Bellaterra.
- Taibo, Carlos (2013). Repensar la anarquía. Madrid: Los Libros de la Catarata.
- Trainer, Ted (2010). The Transition to a Sustainable and Just World. Canterbury: Envirobook (Edição espanhola em preparação: La Vía de la Simplicidad. Madrid: Trotta).
- Vail, Jeff (2004). A Theory of Power. New York: iUniverse.
- Ward, Colin (1996). Anarchy in Action. London: Freedom Press.