Quando os feminismos se toparam com o decrescimento: crónica atípica do I Encontro Mulheres em Transição

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In aliis linguis

Os dias 20 e 21 de junho as paredes de Centro para a Resiliência Pousadoira (Minho) acolheram o I Encontro Mulheres em Transição, um espaço para a formação e a partilha de medos e esperanças frente à nova civilização que se abre aos nossos pés. Trinta mulheres de diferentes idades, pontos do país e trajetórias vitais reunimos ao longo de dois dias imensos e inspiradores num convívio que esperamos que seja a primeira pedrinha de uma grande montanha que está ainda por construir.

A vontade das organizadoras e das assistentes foi divulgar as ideias debulhadas neste Encontro; passaram já três meses, e eu, que assumi essa tarefa, continuo a considerar-me tão incapaz de fazer as conclusões do costume como no dia depois do juntoiro. Porque se falou partindo do pessoal, da emoção, da vulnerabilidade, e não seria justo abafar isso tudo com uma dissertação academicista e asséptica. Porque o que foi compartilhado nas palestras é tão importante como o que se falou a preparar o almoço; o que se sentiu, tanto como o que se debateu. Porque havia trinta mulheres e houve trinta maneiras de integrar e processar os conhecimentos coletivizados.

É por isso que o que segue é apenas uma crónica fragmentária, serôdia e conscientemente subjetiva; uma olhadela polo buraquinho da fechadura para que as pessoas que não pudestes assistir acedais a um pouquinho do que ali se falou e saibais que podeis aderir a esta caminada quando gostardes. E, sobretudo, para que vos sintais acompanhadas nessas esperanças e medos que, como descobrimos neste I Encontro, são muito mais compartilhados do que às vezes imaginamos.

Frente ao colapso, feminismos

Foto do I Encontro de 'Mulheres em Transiçao' (Minho, Galiza, Junho de 2015)
Foto do I Encontro de ‘Mulheres em Transição’ (Minho, Galiza, Junho de 2015)
Tal e como foi apresentado por Begonha de Bernardo na sua intervenção, já vão mais de quarenta anos desde que se publicou o relatório Os Limites ao Crescimento, uma obra que se antecipava ao Teto do Petróleo pouco antes da primeira crise energética. Nele afirmava-se que se o incremento da população mundial, a industrialização, a poluição, a produção de alimentos e a exploração dos recursos naturais se mantinha sem variação, alcançaria os limites absolutos de crescimento na Terra durante os próximos cem anos. O crescimento económico vivido no quadro do capitalismo era, assim, uma dança à beira de um vulcão que nos está a preparar para uma transição inevitável.

O abismo é aqui, e é agora. Há anos que está a instalar-se nas nossas vidas —bem se encarregam os mídia de no-lo lembrar, cobrindo-o sempre com a ilusão de uma “crise passageira”—, e também nos nossos ativismos e projetos vitais. A teoria fez-se carne, e deu luz a centenas de iniciativas sociais que surgem em todos os territórios procurando construir uma alternativa real às dependências geradas pelo capitalismo. E, mais uma vez, mais do que nunca, voltamos a falar de autossuficiência, de cuidados, de bom viver, de comunidade.

Mas, o que é que podem fornecer os feminismos à deconstrução deste sistema que agoniza, e à articulação dessoutra alternativa, lenta, sólida, livre? Já acreditávamos que muito, e ao longo do Encontro descobrimos que era ainda mais:

  • Porque os trabalhos que sustentam a vida, em todas as suas variáveis, das mais físicas às mais emocionais, foram empreendidos tradicionalmente por mulheres. O capitalismo pôs o foco na produção (em massa, inumana) e esqueceu deliberadamente a vida das pessoas. Se queremos voltar a colocar a vida no centro, e não o dinheiro, e não o crescimento económico, teremos que voltar o olhar para as gerações de mulheres que secularmente têm parido, agasalhado, sementado, escutado, velado.
  • Porque não há bom viver sem cuidados, nem revolução em que não sejam atendidas as emoções das pessoas —muito menos num momento de colapso de um sistema, que pode ser muito doloroso para as gerações que mamámos umas expetativas sociais tão diferentes da realidade que nos aguarda. E também nisto temos o aval de uma experiência secular.
  • Porque, como lembrou muito bem Lidia Senra, o papel das mulheres foi (e é) crucial na História como produtoras e organizadoras do que come boa parte da população mundial. A autogestão desta necessidade básica, hoje espoliada pelas multinacionais, tem um papel central nestas alternativas decrescentistas que se estão a articular por toda a parte.
  • Porque os alicerces desta nova civilização estão enterrados e bem amarrados no mais fundo da nossa tradição, e foram as mulheres que se encarregarram, na maioria dos casos, de a transmitir às filhas, e às filhas das filhas.

Se algo ficou claro no Encontro é que, como sociedade, aguarda-nos a estimulante tarefa de reconectar-nos com os saberes das centenas de gerações humanas que nos precederam, mas também com a natureza, com o território, e com o nosso próprio corpo. Com o mais básico, com o que fica mais longe desse mundo artificioso, complexo e ortopédico que nos envolve. É por isto que uma parte de Mulheres em Transição (justamente essa que não cabe nestas linhas) se centrou no trabalho dessas parcelas roubadas que são as maternidades, a sexualidade ou os amores… na recuperação desses saberes indígenas, desses territórios mamíferos de um jeito consciente e cheio de esperança, sabendo que somos uma das primeiras gerações da história da Humanidade que ousou tentar viver de costas a eles.

Conclusões (fragmentárias, serôdias e subjetivas)

Fragmento do cartaz do encontro. Desenho de Bea Arias.
Fragmento do cartaz do encontro. Desenho de Bea Arias.
Aqui vão algumas das ideias que mais se repetiram ao longo do I Encontro Mulheres em Transicão: são conclusões não consensuadas, nem sequer formuladas como tal, mas que de um jeito ou outro estiveram a sobrevoar os debates de todo o fim de semana. Um pequeno roteiro espontâneo que certamente nos valerá para continuarmos a articular uma nova civilização:

Face ao líquido, o sólido. Como lembrou Olalha Barro, vivemos numa sociedade fluida e volátil, na qual a incerteza pela vertiginosa rapidez das mudanças debilitou os vínculos humanos. O que antes eram nexos potentes agora são laços provisórios e frágeis. O mundo que queremos articula-se em redes e relações reais, físicas, firmes.

Face à globalização selvagem, sinergias locais. Uma das ideias mais repetidas no encerramento do Encontro foi a necessidade de começar, desde já, a apoiar-se e conectar os recursos que temos mais perto. Sinergias locais (e sólidas!) que nos permitam caminhar para a autossuficiência e controlar os processos de produção dos elementos que consumimos. Face ao afastamento (que nos mantém distantes mesmo das consequências dos nossos atos mais básicos), proximidade.

Face à cidade, rural e periferias. Muitas mulheres que assistiram ao Encontro vivem e desenvolvem os seus projetos no mundo rural; outras habitam as cidades, e tentam abrir nelas as fendas para outra alimentação, outras relações, outro sistema produtivo ou reprodutivo. Em todo o caso, tentamos que os nossos espaços nada tenham a ver com essa imagem de metrópole deshumanizada, frenética, onde tão dificil é criar comunidade, respeitar os ritmos, cuidar, ou ser autossuficiente.

Face à voragem, tempo e silêncio. “Soa o despertador, primeira humilhação do dia”, recordou Charo Lopes. As sociedades tradicionais erguem-se e deitam-se com a luz do sol, enquanto nós nos encontramos numa batalha constante —já desde o berço— com os nossos próprios ritmos. Os combustíveis fósseis permitem-nos ir mais depressa, e também às mercadorias, às ideias. Desenham para nós um falso cenário em que parece que não há limites, que podemos viajar mesmo mais longe, viver mesmo mais rápido. Mas os nossos corpos encarregam-se de nos lembrar que esses ritmos nom são os nossos: não há bom viver sem tempos despatriarcalizados.

Face ao consumismo, necessidades básicas. Consumimos produtos, consumimos relações, consumimos experiências; mas, quais som as necessidades reais que estão atrás desses satisfatores? Poucas, universais e básicas: alimento, oxigénio, amor, reconhecimento. Só voltando a situá-las no centro poderemos desfazer toda esta maranha física e mental que nos envolve, e transitar para um mundo mais simples com menos dor.

Face à maternidade, maternidades. No plural, porque há muitas maneiras de a viver: como catalizadora de utopias, partindo da vulnerabilidade, como uma experiência empoderadora ou desempoderadora. Mas queremos que seja sempre a partir do afeto e do respeito pelos próprios ritmos.

Face ao individualismo, tribo! Comunidade, tribo, coletividade: repetimo-lo até a extenuação. Faz falta para criar (“para criar uma menina faz falta uma tribo”, dissemos), para quebrar-se, para medrar, para produzir, para avançar. Desejamo-la, lutamos por resgatar o que fica dela, por construí-la com novas e velhas alianças. Porque a autossuficiência não se consegue sem rede, e o capitalismo não se supera a partir do nosso personal computer. E nesse estar acompanhadas, queremos também que tenham um lugar os círculos de mulheres, como espaços de confiança onde fiar presente e tecer futuro juntas.

Face à sua ciência, os nossos ritos. Todas as comunidades tiveram os seus ritos cíclicos para a coesão, e nós também queremos a nossa missa de domingo, a nossa festa dos solstícios, a nossa celebração das luas. Recuperaremos os ritos ou inventaremo-los, mas procuraremos os nossos jeitos de articular espaços coletivos que nos conectem com as pessoas que temos perto, e o espaço e tempo que habitamos.

Frente ao neoliberalismo e o crescimento, conservadorismo de esquerda. Porquê rejeitar algo quando ainda serve? Porquê não aproveitar os saberes que continuam a ser úteis? Diz-se que nas sociedades tradicionais uma pessoa tem memória de 400 anos, quando muitas de nós nem sequer somos capazes de completar a nossa árvore genealógica. A nova civilização precisa de memória, e tem bem mais ferramentas das que às vezes pensamos à mão de semear (o monte em mão-comum e as lutas pelo território são apenas alguns exemplos inspiradores). Não por acaso, ao longo de todo o fim de semana, acompanharam-nos nos diferentes debates e oficinas um fuso e uma roca em que muitas mulheres foram tecendo bocadinhos de lá.

Após estas pequenas receitas, escondem-se grandes perguntas que continuam nas nossas cabeças sem resolver, e que precisarão de muitos mais espaços para o encontro. Que relação manter com o mundo do dinheiro e do trabalho enquanto se dilata a transição para um outro sistema; que parte da nossa tradição como mulheres galegas nos serve e qual não; como gerar tribo nos espaços que habitamos se não compartilhamos com as nossas vizinhas uma mesma maneira de nos relacionarmos (entre nós, com a terra…); ou como viver em ritmos respeitosos com nós próprias quando há tanto para fazer, e é tão urgente construir alternativas sociais que façam possível um outro mundo aqui e agora… são apenas algumhas das dúvidas.

Mas este caminho de constantes interrogantes e respostas mutantes, acompanhadas de outras mulheres em transição, é a nossa própria vida. Assim que, como se ouviu em Casa Pousadoira, é necessário que esta caminhada seja desejável para nós próprias, tornando-a desejável também para o resto da sociedade que fica a dançar à beira do vulcão.


Para mais informações sobre Mulheres em Transição, escrever para mulleresentransicion@gmail.com.

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