(Texto da série A Galiza como tarefa, que fora publicado anteriormente no blogue coletivo A viagem dos argonautas.)
Para o Marcos Celeiro, com a minha admiração e solidariedade.
Uma das questões mais fascinantes da história e da arqueologia é a das decadências das civilizações. De como as crises profundas que declinam em colapsos, são seguidas pelo esquecimento de formas, processos, técnicas, capacidades para fabricar, construir, cultivar, desenhar, sarar os corpos, produzir, de elementos da cultura, de literaturas, línguas, arquivos, bibliotecas, ou até da ciência, da tecnologia e das artes, da sociedade inteira.
Submersos como estamos num mundo regido pelo negócio da construção, empenhados na concentração urbana, na desfeita urbanística, no estrago dos espaços naturais e na exaltação das grandes superfícies comerciais cheias de produtos e componentes cujas origens desconhecemos, esquece-se, normalmente, que ambos, o conhecimento ou a produção, são possíveis graças a contextos e instrumentos, a técnicas, processos e ferramentas prévias. E quanto maior o nível de desenvolvimento social, intelectual e tecnológico maior a dependência de elementos alheios.
É interessante refletir nestes tempos de máquinas com softwares privativos associados, de grandes indústrias e corporações transnacionais obsidiadas no registo de patentes e na exploração de recursos, de exagero na virtude dos consumíveis fáceis e baratos, que qualquer reposição ou reparação, de culturas sem mais sementes que as do mercado fabricante ou produtor.
Desde o século XVIII a economia galega tem apostado uma e outra vez na pequena produção, de caráter familiar, combinada com uma diversidade agropecuária, que parecia ir a contrário dos tempos e da orientação consumista e não sustentável que o capitalismo vai impondo geometricamente desde a Revolução industrial.
Por volta de 1950 e definitivamente após 1975, a substituição de maquinaria portátil ou mediana sem motor por outras elétricas ou eletrônicas é uma realidade. Hoje por hoje com toda a produção orientada e reorientada para circuitos de especialização e produção intensiva, a figura do artesão, do pequeno produtor individual, ciente e consciente dos processos e trabalhos, independente, ou, em boa medida, autônomo, foi ficando estacionado no mito cultural, na exclusividade de certos produtos com mercado restrito no luxo, e na doidice que assalta alguns malucos e malandros alternativos.
Mas como no caso dos cultivos e das peças de substituição, o preocupante não é apenas ou tanto a idoneidade do produto oferecido, quanto a dependência provocada que o mercado assim concebido procura. Com a dependência de uma tecnologia e ultimamente dos softwares privativos o trabalhador não precisa aprender mais que operações concretas e vai esquecendo a prática e as habilidades —melhoradas por gerações na transmissão e aprendizado— vão ficando apenas nos livros de etnografia.
As máquinas sem motor e as ferramentas vão sendo cada vez mais cousas de museus, nem os nomes, nem os usos que tinham lembramos. Um esquema, uma foto, uma descrição, alguma velha filmação testemunha ainda processos e operações, porém vai-se perdendo sem remédio a transmissão de mestres a discípulos do conhecimento.
Vendo os restos de ferramentas romanas, algumas hipóteses das grandes máquinas renascentistas de carga e transporte, ou aquelas máquinas complexas, guilhotinas, teares, máquinas de costura, pregadoras, imprensas, trades, os relógios de corda, etc., e ainda em uso que chegaram a nós. Por que deixaram de se fabricar? Pergunto-me onde foi a liberdade e a autonomia do trabalhador?
Pergunto-me se realmente todos precisamos de máquinas desenhadas para trabalhos em uso continuado, para produções industriais? Ou para que queremos máquinas descartáveis na primeira avaria de uma peça ou na data da sua programada obsolescência? U-las máquinas legáveis como qualquer propriedade ou avença prezada, precisas e sentimentais, sem motor, de durabilidade quase eterna com o cuidado ajeitado? Precisamos?
E que passaria no caso de colapso por falta de energia ou desabastecimento prolongado? Não haveria jeito imediato de voltar as máquinas anteriores, porque os processos de produção, as técnicas os sistemas, os desenhos que produziram as peças, as maneiras de trabalhar eficientes nos seriam desconhecidos e impossíveis porque careceríamos da tecnologia, da maquinaria, da tradição anterior precisa para as fabricar e dar uso.
Brunelleschis, Petrarcas, Gilianis, Gutembergs, Leonardos, Germains, Lovelaces são gente escassa, zumbis, muitos mais. Voltaríamos, temo, muito atrás no quadrinho da oca.