(Limiar de Teresa Moure para o livro de próxima publicação em galego “A Esquerda ante o colapso da civilización industrial“, de Manuel Casal Lodeiro.)
Um fantasma percorre o mundo. Com certeza, percorre Europa, mas uma afirmação como essa seria hoje insuficiente, quando os satélites e as suas ondas irradiam continuamente para manterem o planeta tele-comunicado. Esse fantasma ainda não tem nome. Alguém chama-o de Decrescimento, alguém sugere etiquetas amplas, como ecologia radical ou profunda, alguém qualifica-o, mais suavemente, de apenas outro mundo possível. O esperável seria saudá-lo como mais um camarada, e entendê-lo como uma extensão da justiça social e a distribuição das riquezas naturais, embora convenha caminhar com cautela, visto que se acusa esse fantasma de não ser promovido por um autêntico grupo organizado e combatente, mas por apenas um corpúsculo de hippies come-flores.
Quando Marx anunciou o seu fantasma, quis apropriar-se dum termo, o de comunismo, que estava a ser manipulado por todas as forças da velha Europa para refutá-lo, salientando assim que já era reconhecido como tal e que corriam tempos de expor ao mundo inteiro os seus objetivos e tendências com um manifesto que acabasse com a lenda. Acho que não será incorrer em excesso usar a sua potente imagem e considerar que os desafios referidos à nossa relação com a natureza devem passar também, nesta hora e urgentemente, à fase de organização de estratégias.
Tudo nasce neste caso duma crítica radical ao capitalismo e à sua principal criação: o simulacro da escasseza. Nada chega. Precisamos mais: mais fetiches, mais vestidos, mais carros, mais telemóveis de última geração, mais ipods e ipads e i-tudo. Precisamos tanto para mantermos a roda da produção da economia, dizem, quando não se atrevem mesmo a assegurar que precisamos tanto para ser felizes. A publicidade insinua que nas nossas casas tudo será harmónico e prazenteiro o dia que adquiramos o último modelo de eletrodoméstico, que os nossos corpos podem ser modelados à vontade no mercado da cirurgia ou da moda, que o futuro pode blindar-se com um seguro a todo risco. No mundo confortável que nos pinta o capitalismo, o ser humano aproxima-se perigosamente ao ser unidimensional de que falava Marcuse; alguém que se apaixona com a propriedade, com os objetos efémeros que descarta rapidamente. Traçar uma cadeia de acontecimentos, das consequências à causa primeira, é complexo e o tipo de mecanismos intelectuais implicados nesta tarefa é desconhecido para aquelas pessoas adestradas a olharem para a vida como espetadores de televisão. Adestram-nos para reduzir a existência a fenómenos sem conexão nem efeitos futuros. Convidam-nos, como dizia a Internacional Situacionista, para o dia depois da batalha, para contemplarmos o naufrágio e a confusão que nos rodeiam; não para tomarmos as armas e participarmos na alegria da subversão. Hoje, nas minúsculas interações diárias, para matricular-nos num curso ou adquirir um bem pequeno como um livro, a Internet exige-nos que detalhemos os números impressos no nosso cartão bancário, como se não pudesse existir neste mundo de cidadãos do regime, alguém que não tivesse trato com a banca. É evidente que, com tantos brinquedos a nosso dispor, estamos a esquecer o essencial. Porque num sentido último, as pessoas apenas têm o seu corpo e o seu tempo. A doença ou a morte hão de chegar algum dia para atentar contra o primeiro; o tempo já começa a esgotar-se quando se enuncia a palavra. Pois bem: o sequestro do corpo e do tempo para a produção é a perversão social que o decrescimento vem dinamitar.
O primeiro mandado militante é convencer: persuadir, difundir, chegar a uma massa ampla sem perder o entusiasmo perante as negativas. Mantendo a comparação com o fantasma do comunismo, o movimento em favor do decrescimento, em sentido económico mas nem só, está nessa fase. Porém —não podia ser doutro modo—–, o caminho foi semeado de minas, de maneira que não se pode transitar sem as devidas precauções.
Por deformação profissional ou por neurose pessoal gosto de jogar com as palavras. Ainda mais, gosto de ver como é que as palavras nos fazem. As línguas fornecem de extraordinários exemplos para pensarmos na realidade de maneiras alternativas. Adoro o exemplo do kalispel. Nesta língua ameríndia, falada ainda por uns poucos centos de pessoas, não se pode dizer ‘lago’ ou ‘montanha’. Não é possível conceber os elementos da natureza como objetos, tal e como é habitual nas línguas indo-europeias. Não saberia decidir se seria o animismo o que criou uma gramática semelhante ou se, ao revés, foi a gramática a que produziu uma visão do mundo mais respeitosa com o meio natural. Que em kalispel seja obrigado expressar que a paisagem ‘laguea’ ou ‘montanhea’ é tudo menos anedótico; acho tal exemplo singularmente representativo de como Ocidente impõe a sua ótica fazendo-a passar por universal. Quem falar uma língua onde uma montanha é vista como um objeto, poderá dinamitá-la e extrair os seus minerais. Quem falar uma língua onde o rio é um objeto, pode pô-lo a trabalhar movendo uma turbina. Para quem montanhear ou laguear forem propriedades ontológicas da paisagem, no entanto, essas possibilidades ficam fora do nível de expectativas. Sem dúvida, há uma vinculação forte entre a concetualização da realidade das línguas indo-europeias e o industrialismo que, não por acaso, impôs Ocidente.
Ao recorrer a esta comparação entre línguas, pretendo refletir sobre o próprio termo decrescimento. Decrescer é o contrário de crescer. Por isso, com bons argumentos, os teóricos desta versão alternativa insistem numa proporcionalidade que não fica muito longe da repartição da propriedade nos termos marxistas clássicos: deverá decrescer mais quem mais tenha abusado dos limites do planeta, admitindo mesmo a possibilidade de que alguns países da África tenham ainda que crescer. A questão que surge cá é tão elementar como difícil de responder: Quem é que decide? Que tribunal haverá de praticar essa justiça distributiva? Essa é já uma pergunta pela hegemonia, que nos desloca para o segundo dever militante, tradicionalmente estipulado na conquista do poder, a tomada do Estado e o esmagamento da resistência burguesa.
Os referentes da teoria do Decrescimento, se é que pode falar-se nestes termos, tendem a ser pessoas de alto nível de formação, que moram em centros urbanos e, mesmo se podem ser exemplares no seu uso das energias e nas suas formas de adaptar estes princípios de auto-limitação às suas existências —nenhuma suspeita pela minha parte cá—, acham dificuldades em difundir as suas teorias por estas implicarem que outras pessoas tenham que voltar atrás, que reencontrar-se com um passado que davam por superado. Poderíamos completar o retrato dos teóricos decrescentistas, sem causar muita surpresa, a indicar que, em geral, são homens. Estes traços, grossos e sujeitos a exceção como toda generalização, apontariam para a consideração do decrescimento como uma ótica burguesa, algo que deve ser negado radicalmente. Na construção duma sociedade alternativa ao capitalismo, ao contrário, estes princípios de austeridade voluntária são fulcrais e profundamente revolucionários. Voltarei depois sobre isto, especialmente sobre a masculinidade, porque considero que as teorias decrescentistas procedem e/ou interatuam com as teorias e práticas eco-feministas.
Na sociedade galega, e não será a única onde isto suceda, cada vez que se menciona o fantasma do decrescimento evoca-se uma volta ao passado que produz suspeitas. As reservas mais fortes provêm, aliás, de pessoas dum perfil contrário ao dos ideólogos do decrescimento: gentes de procedência camponesa ou proletária, geralmente de certa idade, que viveram a carência real de bens materiais duma maneira especialmente crua. Nalguma ocasião tenho-me pronunciado em termos decrescentistas e as críticas, nos jornais ou nas redes sociais, foram imediatas e diretas: “vai tu arar sem trator!”, mesmo se não cantava eu um passado idílico para o que regressar, nem pretendia fazer propaganda do arado romano. Que as simpatias para o decrescimento sejam menores entre a população rural, proletária ou feminina —quer dizer, que sejam precisamente as pessoas mais vulneráveis as especialmente contrárias a retroceder nos níveis de produção e consumo— exige refinarmos os argumentos. Porque quando Marx encorajava o proletariado mundial para unir-se, estava a oferecer em troca uma melhora das condições de vida. Se havia que esforçar-se na batalha, seria para libertar-se da situação de servidão a que estavam submetidas as massas trabalhadoras. Nesse sentido, o problema político para a alternativa decrescentista radica, a meu ver, nas dificuldades para convencermos a maioria social —numa massa tão significativa como para decidir o futuro da humanidade— dumas mudanças que vão privar os indivíduos do que consideram a sua principal fonte de satisfação: o consumo. Como este objetivo libertador é uma arma contra o capitalismo, como recupera a dignidade, como incorpora a relação com uma natureza submetida à exploração, não é compreensível que as reivindicações em favor do decrescimento não estejam entre as prioritárias das políticas transformadoras, a menos que o problema aponte que não se tenha incidido bastante em que essas restrições não se formulam só por adequar-se a uma preocupação espiritual ou a uma estética, mas para produzir felicidade.
Vejamos um exemplo. A fenda geracional incrementa-se no uso das tecnologias. Nas portas dos liceus ou nos centros comerciais que tornaram os principais espaços de lazer, as e os adolescentes entretêm o tempo livre clicando com o dedo num ecrã. O professorado insiste em que nem atendem nem entendem nada que esteja fora do seu dispositivo. Pode-se afrontar esta realidade com otimismo —a pensar que estamos perante uma nova forma de alfabetização universal—, ou pessimismo —a laiar-se da escassa capacidade desses jovens de representarem conceitos não associados a uma imagem—. Mas, por muito que a avaliação for benigna, a geração anterior lembra que uns quantos anos atrás havia vida… mesmo sem telemóvel. Éramos menos felizes? Claramente, não. Urge, então, determinar que tática é que vamos seguir para modificar as condutas. O objetivo não seria, entendo, solicitar da população jovem que se desapegasse do seu tele-brinquedo num sacrifício heroico, mas que se auto-limitasse, que analisasse o porquê da sua satisfação com esta droga legal e, sobretudo, que evitasse substituí-lo por um novo modelo quando o mercado o anunciasse com os seus potentes alto-falantes. É difícil convencer os e as adolescentes de fazerem um uso racional do telemóvel, se é que é possível fazer usos racionais desses aparelhos. Igualmente, é difícil convencer ninguém de comportar-se austeramente num mundo abastecido até a obscenidade. Mas, noutro sentido, se o consumo fosse a felicidade, cumpriria reconhecer que a ideologia que sustenta o capitalismo fez bem o seu trabalho.
Todas as pessoas que vimos do proletariado pseudourbano —porque na Galiza falar de urbano se calhar é ousado de mais— passamos nalgum momento necessidade. Quando era miúda, minha mãe guardava o balde para o chão num terraço pequeno descoberto junto à cozinha. Com as geadas duras dos meses de inverno, de manhã havia que romper uma camada de gelo para começar a limpeza. Lembro como esse frio intenso que congelava a água se coava pelas janelas duma casa sem aquecimento nem animais que proporcionassem abrigo e entendo duma maneira entranhada o receio perante uma volta a níveis de consumo inferiores. Entendo… mas não partilho. Porque os níveis de consumo foram afetando as nossas existências de maneira tão impercetível que não é fácil determinarmos quando se tornou em abuso. Qualquer tarefa quotidiana pode dar a medida das mudanças que experimentamos nas últimas décadas. A atividade de abastecer-se de arroz, farinha ou legumes fazia-se anos atrás em lojas onde quem vendia tinha um saco a mão e colhia com uma pá metálica a quantidade precisa, que envolvia em sacas de papel. Hoje uma visita ao supermercado implica aceitar um excesso de envoltórios plásticos desmedido, implica desejar muito mais do que é naturalmente necessário para o sustento e, finalmente, implica que, para encher a cesta da compra de produtos baratos, estes tenham que provir dos outros confins do planeta: os legumes dos nossos mercados chegam do México ou dos USA e, portanto, tiveram que transportar-se usando combustíveis fósseis, para além de armazenar-se durante meses, perdendo nutrientes. Porém, declarar a insubmissão ao consumismo torna-se complexo porque o produto ecológico e de qualidade é sensivelmente mais caro. É o mercado e a sua perversão que está a determinar que a ecologia seja uma sensibilidade de gente “acomodada”.
Como é lógico, essas mudanças do estilo de vida são mais evidentes quanto maior é o leque de tempo que consideremos. Num documentário tão delicado como rigoroso sob o título de Os espigadores e a espigadora, Agnès Varda revistava o uso tradicional dos campos de cultivo, onde uma vez feita a colheita era possível aceder ao campo para espigá-lo, isto é, para prover-se dos alimentos que ficaram esquecidos pela maquinaria. A partir desse uso, hoje provavelmente ilegal, a realizadora persegue com a sua câmara os modernos espigadores: gentes que procuram no lixo, ou nos mercados depois da venda, ou às portas do hipermercado. A maioria das vezes estes rebuscadores fazem parte do lumpem proletariado mas alguns deles são simplesmente rebeldes contra uma sociedade que atira com alimentos em bom estado. A nossa é, sem dúvida, a sociedade do desperdício. A sensibilidade ecologista vê-se afetada quando observamos a quantidade de plásticos que se descartam sem reutilização mas o que se torna especialmente escandaloso é que uma boa parte das frutas que produzem os campos sejam também eliminadas por não terem o tamanho idóneo nos centros comerciais, ou por adotarem formas estranhas —a pataca em forma de coração, a maçã dupla—, que depois fotografamos quando saem nos hortos familiares e ficam tão engraçadas nas redes sociais. A gente já não sabe que as frutas não nascem todas iguais. Em meio do consumo exorbitado e do megadesperdício, as mensagens decrescentistas têm algo de velha sabedoria: referem-se aos limites, à necessidade de fixarmos linhas vermelhas que não vamos ultrapassar. E de fazê-lo num sentido da responsabilidade que é uma marca de ética e de disciplina militante, alheia por definição ao prazer fácil. Não sendo uma resistência burguesa, o problema único estabelece-se em assegurar que esta linha de ativismo seja coletiva, que não fique reduzida a uma elite.
Eis, a questão da manipulação das mensagens. O retrato que pintam de nós, das pessoas interessadas pelo decrescimento, é patético. No fantasma mítico que percorre o mundo, se o teórico decrescentista era um homem sábio, embora pouco comprometido, a destinatária da ideia é uma mulher partidária da ecologia, excêntrica e ligeiramente snobe. A ecologista leva cabelo longo, viste descuidadamente com roupa folgada de estilo hindu e faz ioga. No mito, a ecologista é pouco disciplinada, ainda que defenda as suas crenças com teimosia de sectária. No mito, a ecologista não usa termos como luta de classes, transformação social ou independência: deixou de morar na urbe para ocupar uma aldeia e plantar leitugas e abandona todas as militâncias que lhe exigem um tempo não bucólico. No mito, a ecologista é ascética, acende pauzinhos de essências aromáticas e procura vias de enriquecimento espiritual. Essa série de imposturas destinadas a ridicularizar debilitam o perfil de todas as perspetivas ecologistas —o decrescimento é só uma entre elas—, sem terem que molestar-se em atacar a crítica principal que se está a formular: que não se pode crescer ilimitadamente num planeta finito, sobretudo quando os sintomas de esgotamento do seus recursos são já incontestáveis.
Se a urgência dos problemas é a que se está a apontar, se o petróleo tem os dias contados e a civilização vai colapsar, como asseguram tant@s cientist@s rigoros@s, é momento de organizarmos a resistência duma maneira que implique a totalidade da sociedade. Obviamente, não hão de faltar visões inconscientes que se desinteressem pelo futuro da humanidade, ou interpretações otimistas emanadas dos poderosos centros de investigação sufragados pelo capital e prontos para defenderem os seus interesses. Mas, em certa forma, qualquer cálculo hiperespecializado sobra porque una análise minimamente honesta dos nossos modos de vida sugere que algo não devemos estar a fazer bem quando nos rodeamos de tanto objeto sumptuário para viver uma vida apressada, onde vendemos tanta força de trabalho para termos tão pouco tempo de desfrute.
Agora bem, se quisermos organizar este movimento crítico, haverá que procurar os mecanismos. Nada em contra do hippismo, mas está-se a falar dum assunto prioritário e coletivo. E aqui damos com vários problemas. Duma parte, ninguém acredita que os estados ou as administrações, controlados pelos interesses financeiros, possam dar autênticos passos adiante. Boa parte do descrédito da ecologia procede, precisamente, de que sendo um movimento alternativo, o poder pretendeu fagocitar o seu impulso castrando-o. Foi para isso, sem dúvida, e não por afã de reverdecer a sociedade, que se estabeleceram departamentos “verdes” e “ambientalistas” nos governos que impulsam medidas cosméticas —como contentores de recolhida seletiva de lixo que não asseguram depois um tratamento acorde com o trabalho de seleção— sem mudarem o tipo de sociedade; sem transformarem realmente nada. A alternativa não pode ser individual ou ficar nas mãos dumas poucas pessoas sensibilizadas. Porque no melhor dos casos, estas apenas conseguiriam viver vidas mais acordes com a natureza, com consumos mais ajustados às suas necessidades… sem modificarem as grandes linhas políticas: as que decidem sobre os meios de transporte, sobre as centrais nucleares, sobre uma civilização baseada nos combustíveis fósseis ou na radio-atividade potencial de determinados elementos químicos que, necessariamente, hão de esgotar-se.
Muitas das consciências implicadas em criar vontades novas estão, com efeito, a organizar-se. Aparecem cooperativas de consumo, eco-aldeias, cidades em transição. Conceitos relativamente recentes, como soberania alimentar ou comércio justo, integram-se nas nossas vidas. E, duma forma radicalmente democrática, cresce a ideia de auto-gerir, de exercer o controlo sobre as nossas decisões, uma vez que as instituições fizeram crescer a desconfiança. Sabotar os cultivos transgénicos, denunciar as empresas químicas e fito-farmacêuticas, evitar que nos arrebatem a água são medidas políticas, exercidas por um ativismo consciente. Boa parte desta tarefa tem, aliás, marca feminista, embora proceda dum feminismo desdenhado pela academia e por vezes criticado nos próprios foros feministas mais em moda. Dessa economia feminista[1] chegam noções tão radicalmente revolucionárias como a duma vida que valha a pena de ser vivida, onde os cuidados que praticamos sobre tudo o que amamos se estendam também à natureza. Restringir o lixo, limpá-lo antes que contamine, fertilizar a terra com os nossos resíduos orgânicos são práticas tradicionais de todas as tribos humanas que esquecemos neste desenvolvimento atrapalhado das últimas décadas e evocam o mesmo estilo de esmero que dedicamos a cuidar das nossas crianças, ou a reservar um alimento para que possa ser comido mais tarde. Certo é que os discursos marxistas clássicos adotaram de forma preferente, que não exclusiva, retóricas de combate bem distantes deste discurso maternal. Certo é que muitas das mochilas políticas que trazemos penduradas das costas, e que constituem a nossa referência e a nossa inspiração, preferiram usar termos bélicos como luta, combate, conflito, poder, em vez de termos entranhados como cuidado, esmero, conservação ou nutritivo. Outra vez o assunto volta para as palavras. Quando digo isto não penso que as palavras sejam superficiais e que possa levá-las o vento; ao contrário, as metáforas com que construímos o mundo hão de compor o mundo que havemos de habitar. Se não posso bailar, não é a minha revolução, disse Emma Goldman. Pois, se não posso mimar, também não é.
Nos anos setenta, o movimento Chipko dava início a uma libertação feminista fora dos focos habituais. Em Uttar Padresh, na Índia, tentou-se implantar um mono-cultivo. A companhia que desenhava a proposta prometia dar postos de trabalho aos homens ocupando as suas terras. E as mulheres levantaram-se em contra porque sem o seu horto doméstico, sem as árvores de fruto que davam duas colheitas cada ano, não poderiam alimentar aos seus filhos e filhas. Para evitarem a tala, ataram-se às árvores usando a única arma que as mulheres tiveram sempre ao seu dispor: o seu próprio corpo. Essa reivindicação insólita procedia de lógicas de cuidado, antes que duma prática militante habitual e, contudo, era igualmente subversiva. Exemplos deste tipo repetem-se em distintos momentos em todas as nações colonizadas, mas nem temos que deixar-nos seduzir pelo ar exótico. Porque também nos clássicos achamos reivindicações fortes em defesa da natureza. F. Engels[2] insistia:
Não presumamos das nossas vitórias sobre a natureza; ela vingar-se-há de nós em cada uma dessas vitórias. […] Não reinamos sobre a natureza em modo nenhum, mas pertencemos-lhe com a nossa carne e sangue e com o nosso cérebro; estamos no seu seio, e o nosso domínio sobre ela reside apenas na vantagem que tiramos doutras criaturas por conhecermos as suas leis e servir-nos delas com bom juízo.
E, segundo indica Daniel Bensaïd (2009:167)[3], Marx não seria um anjo verde, mas também não um demónio da produção, visto que nos Manuscritos de 1857-58 inclui uma crítica ao produtivismo, quando nota que se está a desenvolver um consumo ao margem de novas necessidades sociais, sujeito unicamente à lógica automática do mercado. Temos, pois, o suficiente corpo teórico como para priorizarmos o decrescimento na ação política.
Porém, perante a magnitude dos problemas que devemos enfrentar, também não chega com desenhar um projeto para o executar nas administrações; devemos criar uma cultura política que permita o povo participar nas mudanças económicas, sócio-culturais e de sensibilidade vinculadas à nossa relação com a natureza, na linha proposta pelo anarquista Murray Bookchin (1991)[4]. Isso implica pôr toda a nossa imaginação e a nossa força de trabalho ao serviço desse objetivo prioritário, revistando a ciência e a tecnologia, mas também os modelos económicos, os hábitos de consumo, o lazer e os transportes. Noutras palavras, a revolução decrescentista precisaria que nos aprestássemos a modificar as nossas existências para um benefício conjunto, aceitando uma boa base de auto-crítica e assumindo que muitos dos nossos costumes atuais podem precisar revisão. Fora da imagem de fantasma, a transformação decrescentista chegará de construirmos uma cultura ecológica de base popular, amparada no desejo de resistirmos frente ao capitalismo. Quando falamos em ecologia, aceitamos que os seres humanos partilhamos a biosfera com os demais seres vivos e com a paisagem e tratamos de instaurar um sistema de relações que nos faça participes desse sistema biológico, não seres dominantes que o submetem a exploração. Está na pura tradição de que bebemos a possibilidade de rejeitar esse papel de quem se apropriar do direito a subjugar o espaço que ocupamos e tudo o que se move nele. Nesse modelo, a maioria das propostas decrescentistas indicam que os compromissos terão que adquirir-se no interior de pequenas comunidades auto-geridas para fazer realidade a máxima de “atuar localmente, pensar globalmente”. Mas qualquer uma que seja a decisão final no que respeita ao modelo político, cumpre elaborar análises que ultrapassem o puro ambientalismo institucional e os problemas quotidianos da reciclagem ou o uso de pesticidas para decidir a energia que deve usar-se ou modificar as nossas atitudes para o valor não material de, por exemplo, rios e montanhas, como sugere a gramática kalispel. A novidade é que essa cultura política terá em conta, para além dos interesses de classe, (a) os interesses não materiais dos seres humanos, (b) os das gerações por virem e (c) os interesses não humanos da flora, da fauna e o equilíbrio de habitats e ecossistemas. O processo é radicalmente revolucionário porque a sociedade no século XXI leva muito tempo mergulhada numa ideologia destrutiva do planeta, segundo o modelo de desenvolvimento ocidental que, contra todo respeito a outras realidades culturais, se implanta como o único possível.
Na Galiza o apego à aldeia própria, à terra ou à paisagem é ainda um elemento sentimental importante; é sobre essa inclinação natural que é possível perfilar os nossos objetivos políticos. Muitas das atividades que realizamos nem produzem benefícios económicos nem estão sujeitas ao mercado: a dedicação à militância política de base, o ativismo da vizinhança, o cultivo das artes ou o cuidado dos seres queridos não se regem pelo oportunismo nem a convenção. Neste ponto devemos desterrar o ceticismo conservador que indica que as pessoas apenas são movidas pelo egoísmo. Os seres humanos, ainda narcotizados pelo consumismo e numa sociedade gerida pelo capitalismo mais feroz, somos altruístas. Doutro modo, não se explicaria que funcionassem os bancos de sangue ou continuassem os transplantes. Se deixamos em atividades filantrópicas o melhor das nossas vidas, será porque cultivar-se e cuidar d@s demais produz prazer. Em vez de assumirmos acriticamente os males todos do capitalismo, podemos dar-nos a oportunidade de adotarmos um estilo de vida menos opulento, de obtermos grandes satisfações de consumos materiais mínimos, os justos para garantir as nossas necessidades. Com efeito, devemos redefinir o conceito de necessidade para prescindirmos do sumptuário e, ao tempo, assegurarmos para toda a população a cobertura do que é preciso: esta mensagem libertadora não implica a austeridade pela austeridade, nem a austeridade dirigida ao serviço das classes dominantes que sai pela boca dos políticos conservadores; implica apenas esperar prazer doutras fontes.
Todos estes problemas, vistos na Galiza, ainda são mais contraditórios. Na maioria das famílias, desapegamo-nos do mundo rural uma ou duas gerações atrás e temos bem aprendido que o campo é o lugar onde não devemos voltar, mesmo se tudo indica que o futuro está precisamente no tipo de sociedade que tradicionalmente construímos: vivendas rodeadas duma pequena extensão de terra onde seja possível exercer certa soberania alimentar e uma estrutura social de laços bem fortes, que permitam a cooperação e o intercâmbio. Como a nossa auto-estima sempre está à baixa, queremos emular outras nações e o seu industrialismo e isso gera fortes contradições nos nossos discursos que um dia protestam contra a minaria e o dia seguinte reclamam uma regasificadora. Mas também como consequência duma proximidade vital ao mundo do campo na Galiza, a pouco que arranhemos, surge o interesse ecológico em sentido amplo: a paisagem é sentida como própria e está encarnada nos seus habitantes, segundo se observou na maior mobilização da história deste país, a do naufrágio do Prestige. Por isso não é estranho que haja muitas galegas e galegos partidários do decrescimento. Não é estranho que figuras de reconhecido prestígio internacional se expressem em galego para defender esta visão como a única alternativa perante um futuro incerto: a admiração que produzem nas suas lúcidas explicações Carlos Taibo ou Xoán R. Doldán têm tanto o brilho da sua autoridade intelectual como da sua paixão de ativistas. Por isso é lógico que a Associação Véspera de Nada tenha comovido esta sociedade com o seu Guia para o descenso energético. Por isso, Manuel Casal Lodeiro, publica agora este interessante livro para o debate e para a reflexão, com uma dose de provocação deliberada, entendo, contra essa esquerda que, a seu ver, ainda caminha lentamente por estes trilhos do decrescimento. Didático, ameno e bem informado, Casdeiro joga com os princípios da militância, solidamente alicerçados, porque pretende que o decrescimento seja aderido como uma ideia principal, não como mais um adorno nos programas políticos. Retranqueiro e poliédrico, mostra-se como um comunicador direto e fundo, desses que fazem acordar as consciências dormidas. E, se alguma vez se excede atacando essa esquerda, como ele diz —embora eu já não saiba bem que é o que é a esquerda neste mapa concetual cada dia mais light que nos rodeia—, está a comportar-se, sem dúvida, como o velho orador dos gravados clássicos que incita o seu auditório para movê-lo e comovê-lo, ou, como ele diria, para aumentar a sua resiliência. Numa sociedade de consumo maciço como esta que nos toca viver, também os livros são provavelmente demasiados. Este é dos que, mesmo aplicando um programa de ação instalado no decrescimento, são necessários, de maneira que a editora Corsarias cumpre com o objetivo de animar a produção de ideias que está na cerna de toda indústria cultural, mesmo se for conscientemente auto-limitativa. Para o autor e para a editora, o meu agradecimento por permitir-me um espaço que, vista a imprescindível sobriedade, já é demasiado. Finalmente, o que promete o decrescentismo é uma sociedade com mais tempo para a conversa enriquecedora, para o debate de ideias, para a arte, para as relações sociais, para a experiência lúdica, para gozar da amizade e do sexo, para cuidar e receber cuidados; um projeto que pode ser reivindicado nem só como um sacrifício imposto pelo dever militante —que também—, mas como uma conquista decidida do prazer de viver uma vida que valha a pena de ser vivida. Fica aberto o debate.
Notas
[1] Vid. Amaia Pérez Orozco (2014): Subversión feminista de la economía, Madrid, Traficantes de sueños.
[2] Friedrich Engels (2003): Le rol du travail dans la transformation du singe em homme, Besançon, Cardinal.
[3] Daniel Bensaïd (2009): Marx. Mode d’emploi, Paris, Eds. de la Découverte.
[4] Murray Bookchin (1991): Ecología libertaria, Móstoles, Madre Tierra.